Liga e 5 Estrelas apresentam programa de governo eurocéptico, anti-imigração e securitário
Militância está a votar o contrato entre os dois vencedores das legislativas de 4 de Março. Se for aprovado, será levado na segunda-feira ao Presidente da República.
Demorou “mais de 70 dias” a negociar e é “um sucesso”, apesar dos obstáculos colocados por “alguns burocratas de Bruxelas, dos níveis da taxa de juro [da dívida] e dos jornais italianos”. Assim se congratulou o líder do partido anti-sistema Movimento 5 Estrelas, Luigi di Maio, à espera da “sim” dos militantes e simpatizantes inscritos e autorizados a votar online.
Di Maio pode estar contente porque haverá governo, ao contrário do que muitos antecipavam, mas terá dificuldades em disfarçar que no contrato assinado com Matteo Salvini há muito mais do programa que a Liga, populistas de extrema-direita, levou a votos do que das propostas apresentadas pelo M5S aos italianos. Como escreve o jornal La Stampa, “no interior do programa a veia liguista dos ‘italianos primeiro’ [slogan de campanha] é preponderante”.
Salvini não perde uma oportunidade para o sublinhar: “Da segurança às pensões, da imigração ao trabalho, da legítima defesa à flat tax [imposto único sobre o rendimento para pessoas e empresas], do encerramento dos campos de ciganos às creches gratuitas para as famílias italianas, da autonomia das regiões […]”, enumera, tudo isto eram propostas da Liga que entram no contrato.
Em relação à imigração, o acordo fala especificamente da expulsão de 500 mil imigrantes em situação irregular e de pôr fim ao “negócio da imigração”, numa referência às ONG que trabalham no Mediterrâneo a resgatar gente perdida no mar a tentar chegar à Europa – Salvini já fez comentários do género. Está previsto também realizar um censo a todos os imãs que pregam no país; a Liga é desde sempre anti-islão e em tempos chegou a largar porcos no local onde estava prevista a construção de uma mesquita.
Moeda paralela
Em relação à União Europeia, o M5S, ou alguma noção de realidade, levaram a baixar ligeiramente o tom das propostas de Salvini. Já não se promete referendar o euro nem caminhar para sair da União, mas pede-se uma revisão “das regras de governação económica europeias”, incluindo da própria moeda única.
Vira-se em definitivo as costas à austeridade. “A acção do Governo visará um programa de redução da dívida pública, não através de receitas financiadas com impostos e austeridade, políticas que não alcançaram os seus objectivos, mas através do crescimento do PIB com o relançamento da procura interna”, lê-se no texto.
Mais dois pontos preocupam Bruxelas: em vez da “moeda paralela” que surgia como proposta de campanha da Liga, prevê-se no acordo um sistema de títulos de dívida de curto prazo que podem ser comercializados – ou seja, em vez de pagar dívidas a empresas com dinheiro, Roma poderá passar a fazê-lo com estes títulos aos quais corresponderá determinado valor (e que poderão ser usados, diz-se, para adquirir seja o que for). Na prática, trata-se de um plano disfarçado para fazer circular uma moeda paralela.
Aproximação à Rússia
Falta ainda a vontade de, sem esquecer a importância dos “Estados Unidos como parceiro privilegiado”, encetar “uma abertura à Rússia, que não deve ser percepcionada como uma ameaça mas como um parceiro económico e comercial”. Os dois partidos defendem, nesta linha, o fim das sanções impostas pela UE a Moscovo.
Em termos económicos, é introduzida a flat tax – pessoas singulares ou empresas, todos pagarão 15% ou 20% de impostos sobre rendimentos, uma medida que compensa em muito as pessoas com rendimentos maiores e todas as empresas.
Aceitando a medida estrela do programa económico da Liga, o M5S conseguiu impor a sua, apesar de limitada: um rendimento de cidadania de 780 euros. Na verdade, funcionará como subsídio de desemprego, já que só pode durar dois anos e obriga o beneficiário a aceitar pelo menos uma de três propostas de emprego que receba através do centro de segurança social em que terá de estar inscrito.
Por outro lado, o mesmo valor passará a ser o da pensão mínima (“pensão de cidadania”), o que afectará todos os reformados que actualmente recebam menos de 780 euros por mês.
Claro que Salvini não teve problemas com outras propostas do M5S, do combate à corrupção às preocupações ambientais, passando por uma significativa diminuição dos parlamentares (na Câmara dos Deputados e no Senado).
Houve acordo ainda para a criação de um Comité de Conciliação, um organismo de mediação entre o Governo e o Parlamento. Mas caíram as propostas específicas de investimento no Sul, onde se concentram os italianos mais pobres, ficando apenas uma referência à promessa de empenho “na concretização e imposição de critérios de salvaguarda ambiental […], protegendo os níveis de ocupação e promovendo o desenvolvimento industrial do Sul, através de um programa de reconversão económica baseado no encerramento progressivo das fontes poluentes”.
Salvini a subir
De regresso à Liga e à obsessão securitária de Salvini, que em campanha culpou os imigrantes de toda a violência no país, entra no contrato o “direito à legítima defesa dos italianos nas suas casas”, o que só pode ser interpretado como uma reforma das leis de porte de arma.
“Dias e noites de trabalho”, escreveu Salvini na rede social Twitter. “Gostam?” Também a Liga decidiu levar o contrato a votos, não online mas a partir de uma série de barraquinhas montadas em pontos de passagem nas principais cidades onde se pode aprovar ou rejeitar dez dos mais de 30 pontos do texto.
Salvini, claro, gosta muito deste contrato. E também da sondagem realizada pelo instituto Swg para o jornal La Republica, onde a Liga alcança os 25,5% (teve 19% nas eleições), com o M5S a manter-se nos 32,1%. A crescer está também a confiança política em Salvini, que agora surge em quarto lugar, com 36% dos italianos a confiarem nele mais do que noutros líderes, mas ainda atrás do Presidente, Sergio Mattarella (66%), de Di Maio (38%) e do primeiro-ministro do governo de gestão, Paolo Gentiloni (37%).
Até segunda-feira, quando são esperados por Mattarella, e acreditando que os militantes dirão “sim” aos que os líderes negociaram, falta ainda a Salvini e Di Maio encontrar um primeiro-ministro. A única certeza aqui, contra a vontade do M5S, é que nenhum dos dois vai liderar o governo.