“A Expo foi um momento de grande auto-estima para o país. São raros”

António Costa continua a ser feliz no Parque das Nações, 20 anos depois de ter inaugurado a Expo-98. Da Câmara de Lisboa ao gabinete de primeiro-ministro, os problemas com o território têm marcado a carreira deste homem que se tornou ministro a poucos meses da abertura do evento.

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Miguel Manso

Há 20 anos, dois dias antes da abertura da Exposição Mundial de Lisboa, conhecida como Expo-98, António Costa, então com a tutela do evento no Governo de António Guterres, dava-nos uma entrevista já sobre o pós-Expo, antecipando o que tinha de acontecer ali passados os 132 dias de espectáculos e de comemorações dos 500 anos da chegada de Vasco da Gama à Índia. Sete meses antes, no final de Novembro de 1997, assumia, aos 36 anos, o cargo de ministro dos Assuntos Parlamentares, na sequência da demissão de António Vitorino, de quem era secreário de Estado, ficando responsável por aquela que é vista como a primeira grande celebração do Portugal democrático e moderno.

Na sua primeira visita à futura Expo depois da nomeação, pensou, algo desesperado, que as obras pareciam muito atrasadas, dentro e fora do recinto — da CRIL (Circular Regional Interior de Lisboa) aos vários pavilhões temáticos: “Olha, a carreira tão esperançosa que eu tinha vai já morrer!” Foi então que ouviu a voz feminina da comissária do Pavilhão de Portugal, Simonetta Luz Afonso, “num bom vernáculo”, a dirigir-se à sua equipa. “Foi o primeiro momento em que eu disse: ‘Não… isto faz-se?’”

Correu quase tudo bem no seu primeiro cargo como ministro — o país adorou a Expo-98 e o mundo ficou com uma lição para futuras operações semelhantes. Mas tendo em conta que começou a missão com um único cabelo branco, um fio de estimação, e acabou com vários, podemos dizer que António Costa ganhou aqui um lastro, político e mediático, na sua relação com a cidade que acabaria por se reflectir dez anos mais tarde na candidatura à Câmara de Lisboa. Nesta entrevista sobre a Expo-98, que não é política, conforme o combinado, conseguimos falar também sobre a gentrificação das cidades, o turismo e a habitação, a agitação no sector da cultura e a recente polémica à volta do Museu da Descoberta.

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Miguel Manso

O que é que significou a Expo-98 naquele momento para o país?
Acho que foi o primeiro grande momento em que o país sentiu que se tinha modernizado. Que era um país cosmopolita, aberto, capaz de realizar grandes transformações. Culminou todo aquele ciclo da revolução, da liberdade do 25 de Abril, da estabilização democrática, dos primeiros anos da Europa. Finalmente, tivemos um momento em que o país se pôde celebrar, encontrar pela primeira vez o mundo e ver o mundo a reconhecê-lo.

Lembro-me de entrarmos aqui e ficarmos surpreendidos com a qualidade do espaço público, com a limpeza, com as coisas a funcionarem bem. A Expo foi um momento de grande auto-estima para o país, e são raros.

A surpresa foi as coisas funcionarem? Houve um prazo, as coisas foram feitas e foi inaugurado a tempo…
Sim, isso foi a primeira fase: “Não vai ser possível, as coisas não vão estar prontas a tempo.” A grande surpresa foi estarem prontas. Nos primeiros dias vinha muito pouca gente, porque as pessoas achavam que não valia a pena vir logo no início, que faltariam imensas coisas.

Mas depois, quando vieram, não foi só o facto de estar pronto, mas a surpresa de haver um espaço como este em Portugal: eram edifícios que não tínhamos, era um espaço público que não tínhamos, era a qualidade do serviço, desde a entrada à circulação. A Expo foi muito boa, mas também muito inspiradora, e acho que o paradigma de espaço público que temos no resto do país foi muito marcado por aquilo que foi feito aqui.

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Do legado arquitectónico da Expo-98, o Pavilhão do Conhecimento, de Carrilho da Graça, é o preferido de António Costa MIGUEL MANSO

“Utopia” foi uma das palavras que usou nessa altura para definir aquilo que a Expo tinha conseguido fazer no final do século XX. Esse sonho de criar um espaço novo conseguiu alastrar-se às restantes cidades? Ainda hoje se fala do caos urbanístico das cidades portuguesas...
A construção de uma cidade é uma coisa muito lenta. A grande dúvida que existia era o que é que aconteceria quando a Expo acabasse, no dia 1 de Outubro. Ia ser uma nova Sevilha, uma nova ilha da Cartuxa, ou ia mesmo cumprir-se o projecto de cidade que aqui está? Hoje essa dúvida é absurda, muitas pessoas até criticam a excessiva densidade do Parque das Nações, o ter havido, porventura, construção a mais.

Veja quanto tempo levou a ideia da recuperação da frente ribeirinha, que surge pela primeira vez na candidatura de Jorge Sampaio à Câmara em 1989. Levou quase nove anos até se concretizar a Expo. E a junção da Expo ao resto da cidade só agora está a acontecer.

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A Expo está a conseguir coser-se com Xabregas, Marvila e Moscavide? Esse desejo de que nos falava há 20 anos vê-o finalmente a acontecer agora?
Finalmente está a acontecer, mas [o processo] não está completo. Já chegou até Santa Apolónia, ao Terminal de Cruzeiros. Há agora finalmente uma intervenção muito grande na zona do antigo Braço de Prata. Marvila e o Beato estão-se a reinventar com a dinâmica das galerias e a perspectiva de instalação do Hub Criativo na antiga Manutenção Militar.

O alastramento ao resto das cidades com o Programa Polis, manifestamente inspirado na experiência da Expo, ajudou muito a que as cidades ganhassem nova vida. Ainda há pouco tempo estive três dias de férias em Viana do Castelo, que é hoje uma cidade completamente diferente do que era há 20 anos.

Esse processo de requalificação e de valorização das cidades foi lento, também porque o país tinha muitas outras necessidades. As cidades praticamente não beneficiaram de fundos comunitários nos seus processos de transformação, porque eles foram canalizados para o desenvolvimento de regiões mais desfavorecidas e para infra-estruturas básicas, como o saneamento, ou para a criação de infra-estruturas rodoviárias. Portanto, só muito recentemente é que esta ideia de regeneração e requalificação urbana se foi generalizando ao país.

Como é que se faz política com prazos de concretização tão longos? Pensa nisso todos os dias?
É por isso que é muito importante haver consensos sobre o essencial.

Mas é possível convencer um país com prazos de 20 anos?
Está provado que foi. Mas lembro-me bem da dificuldade da construção do consenso para existir a Expo-98. E foi uma conjugação muito feliz: havia um Governo do PSD, havia uma câmara [de Lisboa] resultado de uma coligação do PS com o PCP e ainda outra câmara do PCP, a de Loures.

Para convencer o resto do país, Cavaco Silva teve de inventar aquela ideia de que a Expo se pagava a si própria, criando sempre o equívoco entre a exposição propriamente dita, que mais do que se pagou, e o custo de investimento de infra-estruturas como a Ponte Vasco da Gama ou a CRIL, que obviamente nunca poderiam ser pagas com este tipo de projecto, a não ser que a densidade de construção tivesse sido muitíssimo superior. Foi muito importante ter havido um grande exercício de planeamento, feito com muito rigor, que deu estabilidade ao projecto urbanístico.

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Jorge Sampaio foi imprescindível. A forma como Cardoso e Cunha [o primeiro comissário-geral da Expo-98] conseguiu mobilizar foi importante. E para que isto fosse assumido e pensado em conjunto, a complementaridade de perfis entre Cardoso e Cunha e Mega Ferreira [comissário executivo e co-autor da ideia da Exposição Mundial de Lisboa, com Vasco Graça Moura] foi essencial, não só do ponto de vista político mas do ponto de vista social e cultural. Acho que foi a chave para se ter conseguido fazer.

Quando olha para trás, sente que houve opções que atrasaram o alastramento do efeito Expo à envolvente? Era possível ter feito de outra maneira?
Teria sido possível se a história tivesse sido outra. Houve um momento dramático, o da crise pós-2008. Quando estávamos a celebrar os dez anos da Expo, deu-se a enorme crise em todo o sector imobiliário. O que fez com que grande parte destes projectos de ligação entre a Expo e o centro da cidade estivessem durante anos pura e simplesmente paralisados. Houve falências de empresas, bancos a tomarem conta de projectos, projectos a serem recalendarizados.

Além disso, nos dez anos anteriores a cidade tinha vivido uma enorme instabilidade política. Porque, após a saída de Jorge Sampaio, o mandato de João Soares acabou por ser muito curto. E os mandatos de Soares, Santana Lopes e Carmona Rodrigues foram excessivamente agitados para que se pudesse dar continuidade a uma estratégia de planeamento.

Quando João Soares perdeu as eleições em 2001, havia vários outdoors pela cidade com projectos, desde o de Sua Kay, em Alcântara, até ao do Renzo Piano, aqui precisamente no Braço de Prata. Esse acabou por ser licenciado por mim não sei quantos anos depois.

Está a falar do privado. E do ponto de vista público?
Foi feita a ligação do metro, a ligação da Infante D. Henrique, só que ficaram enormes vazios. Aquela Infante D. Henrique durante anos não foi uma avenida, mas uma via rápida que ligava a Expo a um engarrafamento no centro da cidade.

Ainda faz sentido fazerem-se eventos com a ambição da Expo para resolver os problemas das cidades e do país?
Uma nova Expo em Portugal acho que não. Para o interior do país, poderia fazer sentido não propriamente uma Expo, mas um mecanismo semelhante.

E que mecanismo semelhante seria esse?
Um projecto com o alcance transformador que a Expo-98 teve em Lisboa.

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