O que fazem 16 crianças e quatro seniores na mesma sala de aulas?
Projecto internacional Sachi2, coordenado em Portugal pelo Porto4Ageing, da Universidade do Porto, está a testar o impacto de projectos de educação intergeracionais. Juntando seniores e juniores, destroem-se estereótipos sobre a velhice. E a aprendizagem acontece
Há um ditado popular capaz de deixar Teresa Martins com os nervos em franja. Nele, escondem-se preconceitos alimentados há anos e desrespeito por legislação básica. Quando ouve dizer que “burro velho não aprende línguas”, a educadora social põe-se a reflectir sobre discriminação e pensa na Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Se os direitos lá contemplados não têm uma idade para terminar, porque é que o direito à educação parece chegar ao fim a partir de certa altura?”. A conversa decorre minutos depois de mais uma sessão do Sachi2 (Sharing Childhood 2), um projecto intergeracional que está a decorrer em quatro países (Portugal, Espanha, Escócia e Polónia) e é financiado pelo Erasmus +. Nele, seniores e crianças partilham salas de aula e mundos distintos — e ambos ganham com isso.
Por cá, o projecto piloto chegou ao terreno em Outubro. Mas anda a ganhar forma há coisa de um ano, quando o Porto4Ageing, Centro de Excelência em Envelhecimento Activo e Saudável da Universidade do Porto, começou o trabalho de investigação. Uma das (muitas) formas de discriminação das pessoas mais velhas é a falta de oportunidades. E na educação, aponta Teresa Martins, técnica do projecto, isso é gritante: “É como se este grupo deixasse de ter interesse”. Para quem nunca reflectiu sobre o assunto, Teresa sugere um exercício simples: já repararam que, com excepção de projectos como a universidade sénior, se fala de educação para adultos apenas na vida activa? Por que razão o conhecimento não é promovido para lá disso?
Octávio Coelho passa às apresentações. “Sou o mais novo do grupo. Tenho 49, mas ao contrário”, diz com ar desafiador para logo de seguida se deixar levar pelo sonho: “O que eu gostava mesmo era de ainda ter 14, para aproveitar mais a vida.” O comandante da Marinha é um dos quatro seniores que integram o projecto piloto que junta alunos do Colégio Luso Internacional do Porto (CLIP) com idosos do Centro de Apoio Social do Porto – Instituto de Acção Social das Forças Armadas.
Na pasta de couro que leva para as aulas, focadas na língua inglesa, guarda todas as fichas, exercícios realizados, apontamentos. No lar onde vive, não deixa de fazer os trabalhos de casa. Quando ali chegou sabia dizer thank you e pouco mais. E agora? “I like you very much”, responde. E mais: “kiss me, my darling”. Não é um conhecimento monotemático. Octávio Coelho aprendeu os números, a perguntar o nome e algumas saudações, decorou os meses e os dias da semana. E, mais importante do que isso, recebeu doses renovadas de ânimo.
A aula vai a meio quando a professora Dina Sameiro anuncia o “mini workshop” que Octávio vai ministrar: como fazer nós? O comandante distribui um cordão por cada aluno e logo começa. Poucos segundos e já está: “O primeiro chama-se lais de guia.” E perante a confusão instalada recorre à teoria da relatividade: “Isto é bem mais fácil do que inglês”, sorri. Mas à medida que a complexidade dos nós aumenta as desistências vão acontecendo: “Tenha paciência, Octávio, isto é bem mais difícil do que inglês”, conclui sorridente a professora.
"Isto assim não atrofia"
Graça Capela, 86 anos, anda encantada com aquelas sessões. Em menina aprendeu apenas francês — e num sistema de outros tempos: “Tínhamos um dicionário de português-francês e um de francês-português e aprendíamos assim, palavra por palavra”, recorda. “Já não me lembro de nada.” Quando a Universidade do Porto desafiou Isabel Varandas, assistente social do instituto onde vive, a integrar aquele projecto e o convite se arrastou a Graça ela não teve qualquer dúvida. “Hiperactiva” por natureza, amante de pintura e escultura, achou fantástica a ideia de ter as portas abertas mais vezes. “O contacto com as crianças é inspirador.” E as aulas, acrescenta o coronel José Matias, são uma forma de “afastar a rotina, abrir o espírito, treinar a memória”. Ou, como diz Graça com um gesto a apontar para a cabeça, de manter a sanidade: “Isto assim não atrofia.”
São 16 os alunos do CLIP que partilham a sala de aula com eles. As mesas estão dispostas em pequenas ilhas, num arquipélago de quatro, cada uma com um sénior e vários meninos e meninas com dez e onze anos. Não são só portugueses: há chineses, brasileiros, um sul africano. E isso tornou o desafio ainda mais interessante, salienta Dina Sameiro: havia alunos lusos que dominavam minimamente o inglês, alunos estrangeiros que só falavam inglês e idosos que sabiam pouco da língua inglesa. “Muitas vezes os portugueses tinham de traduzir para que todos se entendessem.”
É o que se vai passando na ilha onde está Silvina Casinhas, 70 anos cumpridos. A aula é sobre celebrações e fala-se de aniversários: como celebram as crianças e como celebravam os mais velhos quando tinham a idade deles? “A primeira vez que festejei os meus anos foi aos 12, com um bolinho”, diz Silvina perante o olhar de espanto das crianças. “Como assim? Mas antes não celebrava?!”, questiona-a Matilde, dez anos, ao mesmo tempo que vai traduzindo a conversa no seu melhor inglês a Bo, aluno chinês também com dez anos. “Como é que é possível? Eu festejo todos os meses!”
A distância entre os dois mundos é enorme. “A muitos destes alunos nunca passou pela cabeça a ideia de falta de conforto. Vivem numa bolha”, aponta a professora. Há umas semanas, depois de uma aula onde se falou sobre a escola no tempo dos seniores e na de hoje, muitas das crianças mostraram-se chocadas com uma história contada por Octávio Coelho: na primária dele, não havia janelas. “Não lhes passava pela cabeça que as coisas fossem tão diferente”, aponta José Matias, 65 anos. “Não imaginam, por exemplo, a vida sem telemóvel e internet.”
Para novo ninguém vai...
Os ganhos — e a aprendizagem cultural — são, portanto, válidos para os dois lados. Até porque o envelhecimento é um tema que deve interessar a todos, recorda Teresa Martins a recorrer-se de uma verdade La Palice: “Todos somos mais velhos hoje do que éramos ontem”. Antes de o projecto piloto estar a funcionar, foi feito um questionário a seniores e juniores — para, no final, serem reavaliadas as representações de uns e outros.
Para já, os questionários vão apontando no sentido da existência de preconceito e discriminação. Os mais velhos, resume a educadora social, são frequentemente infantilizados, tratados como se fossem menos capazes, vítimas de maus tratos, de negligência. Muitas vezes deixam de controlar o próprio dinheiro, perdem autonomia. É o chamado idadismo, explica Teresa Martins, o preconceito e discriminação com base na idade.
“É uma realidade e é preciso falar sobre isto”, apela. Para quebrar estereótipos sobre a forma de viver a velhice, a equipa do Porto4Ageing tem, para já, duas turmas em funcionamento: a do CLIP e uma na Santa Casa da Misericórdia. Em Janeiro, arranca outro grupo, também na Santa Casa. O objectivo final é alargar ainda mais, inclusive a escolas públicas (que não conseguiram responder em tempo útil para entrar na fase inicial do projecto). E “recolher evidências científicas” de que a educação intergeracional tem “impacto”. Octávio, José, Silvina, Graça e os alunos do CLIP já deram o seu parecer.