Terão sempre os homens de perseguir e de engendrar novos e rebuscados sistemas de exploração do seu semelhante?
Imaginemos um café que, como é hábito em muitos estabelecimentos, tem jornais para que os clientes os possam ler. No caso, existe um jornal diário, da imprensa generalista, digamos, e ainda um jornal desportivo. Muitos clientes, ao entrarem no café, procuram uma mesa livre e ainda, ou mesmo antes, pela localização dos jornais — qual deles estará livre e onde.
Esta situação gera alguns comportamentos. São normais as perguntas "é seu (o jornal) posso levar?" ou ainda "quando acabar de ler, pode dar-mo?". Esta tensão, nalguns casos, originou soluções imaginativas por parte de alguns donos de estabelecimentos. Confrontei-me, num caso, com a escrita manual na primeira página do periódico: "Este jornal pertence ao café XX, tempo máximo de leitura 15 minutos".
Apesar de todas a precauções é impossível prever todas as situações. Aproximemo-nos, pois, das nossas personagens. Chamemos-lhe o senhor Manuel e o senhor António. O senhor Manuel chega mais cedo, pega no jornal generalista e no jornal desportivo: um em cima da mesa, em leitura, e outro na cadeira, semi-ocultado, na esperança de controlar a situação.
O senhor António chega depois, cumprimentam-se. O senhor Manuel oferece-lhe o desportivo, prontificando-se o senhor António a devolvê-lo rapidamente, assegurando só estar interessado em ler as gordas. Os outros clientes mostram algum sinal de impaciência, mas nenhum deles diz nada: aceitam resignados a sua posição subalterna a um bem que é de todos, que pertence por igual a todos os bebedores de café da casa!
Entra, mais tarde na história, o senhor José que, aparentemente, não pertence a esta cadeia predatória. O senhor Manuel oferece-lhe os dois jornais, mas ele não está interessado. Procura um suplemento, senta-se na sua mesa e ficam depois à conversa: sobre temas de futebol, alguma política. Vejo que percebem realmente do mundo e que se reconhecem reciprocamente, apesar de apoiarem equipas diferentes. O jornal e o suplemento abertos na mesa sem que ninguém os leia, nem mesmo os seus proprietários transitórios.
Vê-se assim como, numa coisa tão simples e inconsequente como o café matinal, se pode estruturar uma pequena sociedade com líderes informais, reconhecimentos mútuos e até pessoas excluídas e com menor acesso a um bem apetecível (se bem que também existem clientes que não estão minimamente interessados nestas lutas).
Cumpre acrescentar que o senhor Manuel é reformado, cliente diário do estabelecimento: adquiriu portanto direitos e de alguma forma um território. Senta-se sempre na mesma mesa, chama os empregados pelo nome, pelo que é difícil lutar contra um poder assim.
Pela minha parte, só posso frequentar esse estabelecimento imaginário ao sábado e ao domingo, e nem sempre em todos, como poderão supor. De qualquer forma, e com o passar do tempo, fui ficando conhecido: o empregado traz-me o que costumo tomar sem que tenha de pedir, o senhor Manuel e senhor António já me cumprimentam e hoje, suprema vitória, já consigo aceder aos jornais antes do cliente comum. Sou um bebedor de café já reconhecido na sociedade.
Se não os podes vencer, junta-te a eles — e cá estou eu instalado nesta minúscula relação de poderes. Antes lia as gordas no smartphone e estava reduzido a essa omnipotência tecnológica. Agora já não sou dos últimos na leitura…