Surdez: Hélder Duarte emigrou “para não ser desigual”
Nasceu surdo, com pais ouvintes, e cresceu longe deles para que pudesse ter uma educação adequada. Ajudou a pôr a língua gestual portuguesa na Constituição. Mas há 18 meses trocou as salas de aulas portuguesas por uma caixa de supermercado em França. A fugir da discriminação
Andava de emprego em emprego, com a mala às costas e a insegurança ao pescoço. Alternava entre as Escolas de Referência para Educação Bilingue de Alunos Surdos e a Escola Superior de Educação de Coimbra. Todos os anos tinha de concorrer para trabalhar. E quando o Governo de Passos Coelho diminuiu o número de vagas para professores e intérpretes de língua gestual portuguesa, Hélder Duarte resignou-se. “Pensei que teria de escolher outro ramo”, conta ao P3 numa entrevista por email.
Escolheu a área do comércio. Mas a integração na equipa do El Corte Inglès foi complexa — não se sentia feliz. E então pensou de novo: desta vez em emigrar. Em Nogent-sur-Marne, em França, Hélder, surdo de nascença, conseguiu emprego, com contrato efectivo, ao fim de seis meses. Numa cadeia de supermercados, outra vez. “Na entrevista para este emprego perguntaram-me se via a possibilidade de ser caixa. Isto seria possível em Portugal? Eu próprio fiquei admirado”, recorda. A integração foi “perfeita”. “Aqui não me sinto descapacitado, a mentalidade e a cultura francesa fizeram-me sentir bem”.
Emigrar significou ter de aprender duas novas línguas: a gestual francesa e a francesa. Mas ao contrário do que acontecia em Portugal, colegas e chefias foram um real apoio. E clientes também: “Aqui há quem saiba os gestos básicos”, revela. Passou mais de um ano desde que Hélder se mudou para França — e regressar não está em cima da mesa.
Quando Hélder Duarte nasceu e os pais se viram com dois dos seus três filhos surdos, o mundo deles tombou. Era Agosto de 1965 e a família vivia em Huambo, Angola. Se crescessem ali, Hélder e Nelson nunca teriam a educação que precisavam, pensaram os pais. Ponderaram emigrar para o Brasil. Mas ao ouvir falar do apoio escolar existente em Portugal, elegeram Lisboa. Hélder Duarte ainda não tinha completado um ano quando entrou no colégio São Francisco de Sales. Ficaram os dois irmãos em Lisboa, voltaram os pais para Angola.
Era só o início de tudo — de uma difícil adaptação a um mundo às avessas onde surdos e ouvintes viviam, em muitos aspectos, em bolhas separadas. E onde, 50 anos volvidos, tanto continua por fazer. Foi uma decisão difícil a daqueles pais, entre a certeza de estar a fazer o melhor pelos filhos e a dor da distância: “Eles não sabem gestualizar, mas deram-me tudo o que podiam dar: uma educação”, acredita Hélder.
A escola foi o centro do mundo deles por muitos anos. Imersos na cultura e na língua gestual portuguesa, fizeram dessa a sua língua materna, mas com acesso a um ensino bilingue. Era no colégio interno de Lisboa que passavam o Natal, a Páscoa, as férias de Verão. Pouco saíam. Os pais só voltaram a vê-los passados quatro anos: “Foi um momento muito difícil, porque não os conhecia como pais”, recorda.
Por essa altura, os meninos começaram a fazer as férias de Verão em Huambo. Os pais não compreendiam o que eles diziam, mas o irmão Germano, ouvinte e mais velho do que eles, ajudava-os a criar pontes. Foi difícil. Mas entendiam-se. “Quando existe amor, tudo se supera.”
Depois de Abril
Portugal vivia os tempos quentes de 1975 quando, depois de terem perdido tudo em Angola, os pais de Hélder regressaram a Vimieira, a aldeia no concelho da Mealhada onde tinham raízes. Ali se reuniu toda a família. Mas, para os irmãos, aquilo já não chegava: “Sentia o deafhood [traduzido como cultura surda ou surdidade] e era junto dos surdos, nesse mundo, que me sentia bem”. A pensar neles, os pais arrendaram uma casa em Lisboa, junto da Associação Portuguesa de Surdos (APS), e para lá se mudaram.
Corria o ano de 1977. E “um mundo de conhecimento” se abria à frente deles. A APS era uma “biblioteca” onde tudo cabia. Havia espaço para o mundo ouvinte, mas também um renovado acesso à língua, ao deafhood. À cultura, através do teatro, e ao desporto. “Este mundo era muito maior do que aquele que o mundo ouvinte me podia dar.” Só ali, Hélder percebeu por completo a gigante distância entre o oralismo e o gestualismo: “Era como se estivesse entre a Palestina e Israel”.
Foram várias as “situações traumáticas” pelas quais passou. A dicotomia entre os universos surdo e ouvinte obrigava (ainda obriga) a uma “grande esforço” de adaptação. E esse tinha de ser feito sempre pelo mesmo lado. Aos 19 anos, a fintar a falta de horizontes, começou a viajar por várias geografias (já conhece “metade do mundo”): “Tive de sair para não ser desigual.”
A luta pela LGP
Quando Hélder chegou à presidência da APS, muito caminho tinha sido feito: havia professores surdos, intérpretes, acesso à carta de condução. Faltava o passo maior de “elevar a LGP” e dar-lhe espaço na Constituição. “Foram dois anos de luta, com grande esforço de todos os envolvidos: pais, famílias, surdos, professores, intérpretes, partidos políticos.” Numa das primeiras idas à Assembleia da República, recorda Hélder, tinham apenas 30 minutos para expor o que ali os levava — mas acabaram a conversar durante três horas.
Havia interesse. E o sonho tornou-se real: em 1997, a LGP passou a integrar a Constituição, sendo a quinta língua gestual a fazer parte deste documento em todo o mundo. Mas vinte anos depois, lamenta Hélder, ainda há muitos que se esquecem disso. “O Estado e o poder político deviam comprar uns óculos para lerem a Constituição da República Portuguesa (artigo 4, alínea h)”, critica. No portal da Assembleia da República, Rui Oliveira Pinheiro, da Federação Portuguesa das Associações de Surdos, submeteu uma petição para que todos os programas infantis tenham legendas. Recentemente, o Bloco de Esquerda propôs que a LGP passe a ser uma disciplina também para ouvintes.
O caminho é longo. Até porque, acredita Hélder Duarte, o próprio modelo das escolas bilingues não é o mais acertado. “A escola inclusiva não é uma escola de surdos. É uma escola de ouvintes.” Nessas unidades, é suposto “que se fale em LGP nas aulas”, explica. Mas o que acontece na prática? “São poucos os que sabem LGP, ou seja, o que nós encontramos são grupos de alunos surdos, que nos intervalos falam e estão juntos. A escola inclusiva não olha para o mercado de trabalho quando olha para os surdos.” O preconceito existe, lamenta Hélder. E há ainda uma “revolução por fazer: da mentalidade, da existência, do direito a ser-se pessoa até morrer.”