Fala-se muito dos médicos e dos estudantes de Medicina. Sempre fomos acusados de não termos uma vocação verdadeira, de termos uma motivação económica por detrás das nossas escolhas. E sempre nos foi exigido que fôssemos infalíveis.
Entendo esta última. Toda a gente reconhece que se, por exemplo, uma costureira cometer um erro ao coser um vestido, as consequências serão muito menos graves (pelo menos para a maioria das pessoas), do que se for um médico a cometer um erro ao suturar um doente.
Mas, mais recentemente, além de sermos acusados de não querermos trabalhar (claro que uma pessoa que não quer trabalhar escolhe de imediato o curso com a média de entrada mais alta e o único com três provas de ingresso, naturalmente), somos acusados de não termos vida e, mais grave ainda, de não nos interessarmos por nada.
Gostava de dizer a todas estas pessoas que acho que temos vidas fantásticas. Por várias razões, mas por nenhuma das que possam calcular. É preciso estar em Medicina para entender quem se dedica a isto.
Em primeiro lugar, e como me ensinou alguém que já era médica antes de eu nascer: "Nós temos o privilégio de conhecer o nosso suporte... Onde as pessoas vêem um idoso que treme, nós vemos um doente de Parkinson". Mais do que um privilégio, isso é uma honra e uma responsabilidade, uma que os meus colegas que já são médicos aceitaram, e que nós, estudantes, aceitaremos um dia, porque o nosso primeiro interesse — para quem diz que não temos nenhum — são as pessoas. Conheço estudantes de Medicina que interromperam os seus estudos para ajudar refugiados naquelas fronteiras que nós só vemos na televisão enquanto jantamos descansadamente.
Conheço estudantes de Medicina que são voluntários da Cruz Vermelha Portuguesa. Mas, tal como aprendemos na praxe, "a vida não é só estudar". Por isso também conheço estudantes de Medicina que são óptimos músicos, desportistas, escritores, actores, explicadores, missionários… E óptimos militantes partidários e independentes, de esquerda e de direita, com convicções em que acreditam e que defendem fundamentada e democraticamente. Pessoas fantásticas que, não contentes com já serem óptimos a tudo isto, chegam às suas casas e ainda arranjam tempo para ser óptimos filhos, irmãos, amigos e namorados. Conheci grandes pessoas na faculdade e vi a minha faculdade ajudar grandes pessoas que conhecia a tornarem- se enormes.
Talvez por estas razões, estamos sempre "ligeiramente" apertados de tempo. Não porque não tenhamos vida, mas porque temos demasiada vida dentro de nós. Há certamente colegas que não se interessam por política. Mas fazer uma generalização desse tipo é anular os esforços da esmagadora maioria de nós que não desiste de fazer a diferença em todas as áreas a que se dedica. A todos eles, estou tremendamente agradecida por vos ter conhecido. A todos os que não compreendem, entendo. Somos de facto pessoas um pouco diferentes, um pouco loucas. Mas façam um esforço: da próxima vez que se encontrarem com um dos nossos, não lhe perguntem pelos estudos. Perguntem-lhe o que é que ele ou ela faz além de aprender a tratar doentes. E depois digam-me se mudaram de opinião.