Há um jogo de tabuleiro criado por dois franceses que se chama Lobisomens da Aldeia Velha. André Santos, de 26 anos, anda com ele na cabeça desde 2002. Foram muitas horas passadas em volta de uma mesa a encarnar personagens de um universo paralelo e envolto em misticismo. Anos mais tarde, cria um jogo em homenagem a esses tempos, mas com sotaque português. Afinal, A Aldeia Adormece pede que, por uns momentos, habitemos o Talasnal, pequena povoação serrana do distrito de Coimbra.
Talvez por se ter acostumado a habitar o imaginário de uma aldeia, André prefere apresentar o jogo ao P3 no Miradouro da Rua da Bataria da Vitória, no Porto, onde as paredes da cidade não tapam o horizonte. É o melhor que se arranja para simular o local onde todo começou. Acaba também por ser conveniente já que, embora também tenha nascido numa pequena freguesia de Valongo, o miradouro fica perto do Estaminé, o seu atelier.
Passou a assinar os trabalhos que desenvolve com esse nome: Estaminé. Era só André Santos quando há cinco anos desenvolveu o projecto Cá se fazem e, em em 2013, o fanzine disfarçado de objecto de luxo Nem Tudo o que Reluz é Ouro.
Tudo o que o Estaminé mexe, que na verdade é trabalho das duas mãos de André, é moldado a pensar em edições limitadas e envolve investimento monetário pessoal. Mas A Aldeia Adormece é muito mais que uma ideia, há uma infância pelo meio. “Faço parte de uma associação de campo de férias. Jogava-se muito o jogo Lobisomens da Aldeia Velha. Sempre gostei deste jogo, coloca amigos em volta da mesa a fazer bluff, mentir e a discutir. Sempre gostei muito disso, desde muito novo.”
Mas afinal em que consiste o jogo? Estamos no início do século XX, no Talasnal. Até aqui tudo bem. O resto “pode parecer complexo”, avisa André, por isso mostra uma explicação de outro aficionado, o amigo Tiago Machado, que acredita ser um bom ponto de partida: “Cada jogador começa com uma personagem que mantém durante toda a duração da partida. Essa mesma personagem pode pertencer a duas facções: Aldeão ou Lobo. O objectivo é bastante simples — os aldeões têm de descobrir todos os lobos, enquanto os lobos têm de conseguir matar todos os aldeões antes de serem descobertos. Como? Através de argumentação.”
Onde não há ursos há javalis
O jogo conta com dois turnos: o turno da noite – quando a aldeia dorme e os lobos aproveitam para matar – e o diurno, quando a população acorda e tenta decifrar quem veste pele de lobo. Esta discussão pode arrastar o jogo por horas e horas.
Este Talasnal imaginado, envolto em misticismo e em suspeita, tem ganho mais atenção do que André tinha previsto, mas tudo começou graças ao incentivo de amigos e conhecidos. “Comecei aos pouquinhos este jogo", conta o criador. "Há dois anos a passagem de ano foi com essa malta do campo de férias, jogamos o original e a malta gostou. Já penso nisto há anos. Esta a ganhar uma dimensão que eu não estava nada a espera.”
Do primeiro contacto com o jogo à materialização foram muitos anos. Talasnal, a aldeia de xisto real que envolve o mistério da Aldeia Adormece, está diferente. Há mais turistas, o seu encanto também se foi diluindo para o autor. Mas ressuscita quando, sentados ao redor de uma mesa, oito ou 25 amigos recebem uma carta com a personagem que vão ter que personificar. Muitas existem no jogo francês em que se inspirou, mas André teve o cuidado de modificar algumas para facilitar o envolvimento de quem joga. No Talasnal não há ursos, mas há javalis. Pode-se, por exemplo, vestir a pele de um javali que vagueia pelo relevo acentuado da localidade na Serra da Lousã.
Neste momento ainda não é possível deitar as mãos ao jogo. O projecto, que conta com ilustrações de 23 ilustradores diferentes, está disponível para pré-encomenda na página de Facebook do Estaminé. Uma forma de ajudar a suportar os custos, já que, tirando alguns apoios, a grande fatia do orçamento saiu do bolso de André. Serão feitas duas edições: uma com 400 exemplares e outra de luxo, que contará com 100 exemplares e trará alguns extras, como uma caixa de madeira (como se pode ver na imagem). A aldeia serrana portuguesa chegará assim a pelo menos 500 mesas espalhadas pelo país. De repente, o Talasnal fica mais perto.