Os jornalistas não pedem desculpa, os políticos não pedem desculpa, nós não pedimos desculpa. Ninguém quer ter a responsabilidade de assumir a culpa de uma tragédia que ainda não nos levantou do chão. Mas para que é que queremos responsabilidades se nem tivemos tempo para chorar os mortos como deve ser?
Há um aviso que quero deixar já por escrito antes que seja alvo de críticas — e eu sei que vão aparecer. Sou jornalista credenciado, não fiz a cobertura dos incêndios e não trabalho numa redação de um órgão de comunicação social faz agora quase um ano. Posto isto, vou prosseguir. Aliás, vou desabafar. Porque dizer o que se pensa sobre o que se conhece é sempre o mais fácil — e é isso que vou fazer aqui. Está tudo a comentar, a opinar, a tentar encontrar respostas. Mas ninguém quer desabafar. Ninguém quer reflectir, sem ruído, sem gritos, sem ofensas ou críticas. E eu não estou comprometido com ninguém e isso livra-me de ser escrutinado. Mas se o for, ainda bem, desde que isso resulte em algo palpável não caíndo no esquecimento. Li muita coisa — artigos despegados de sentimento, outros a transbordar de emoção. Vi muita coisa — reportagens que me deixaram sem fôlego e debates televisivos que me deixaram à beira de um ataque de nervos. Ouvi muita coisa — relatos que não deviam ter acontecido, relatos que aconteceram porque aconteceu o impossível. E até agora ainda não tenho respostas. Mas será que preciso delas agora?
Porque se foi falha do governo, há que apurar. Porque se foi falha da GNR, da Proteção Civil, do SIRESP ou da falta de planeamento e de estratégia de prevenção, não é agora que vamos encontrar culpados. Porque se foram as alterações climáticas, não é no presente (sim, hoje, agora) que se vai solucionar um problema antigo. Porque se foi deste governo, e do anterior, e do anterior do anterior, para que é que eu vou irritar-me com quem já nem sequer tem responsabilidades para assumir o esquecimento que inflingiu na nossa área florestal. Eu também quero saber o que aconteceu. Mas também quero saber, aliás, ter a certeza, que não volta a acontecer. E para isso, temos de aprender a desabafar.
Passou pouco tempo. Os incêndios de Pedrogão Grande foram dominados. O que devia ter ficado deste filme de terror, para além de recordar as mortes e de ajudar os que ficaram, era a onda de solidariedade. Mas teve perna curta. Tem sempre. Porque quando uma parte do problema está cumprido, é preciso passar para as outras partes. Porque se não tivessemos filmado uma jornalista ao pé de um cadáver, se não tivessemos andado atrás de culpados fantasmas ou de jornalistas fantasmas, era isso que ficava. Se não tivessemos gasto as energias a perceber se o avião caiu ou não, podiamos todos em conjunto, tal como fizemos em menos de 48 horas, seguir em frente. Mas não, não somos assim. As redes sociais deitam cá para fora o pior de nós. A vontade desmedida de ter um bode expiatório suplantou-se ao luto nacional. E o que sai de toda esta esquizofrenia? Nada. Absolutamente nada. Já não temos tempo de respirar.
Veja-se as manchetes que se fizeram a pedir a cabeça da ministra da Administração Interna. Os prós e os contras, espalhados por todos os canais generalistas, esprimidos por dezenas de especialistas — que sabem o que é preciso fazer há anos, mas que nenhum político quis aplicar, em toda a sua génese, até hoje — a explicar, ponto por ponto, porque é que todos os anos vamos respirando mais cinza que ar puro.
E agora pedimos desculpa. Porque pedir desculpa é um momento de catarse, muito amigo da nossa memória colectiva curta. Passos Coelho matou pessoas sem dar conta. Marcelo Rebelo de Sousa disse que não havia mais nada a fazer sem dar conta. E António Costa mantém a confiança nas estruturas que lidera, mesmo que existam indícios que essa estrutura andou às aranhas, ainda antes de dar conta dos relatórios. Mas não andamos todos às aranhas? Estamos em estado choque. Deixem as bandeiras nacionais a meia haste. Baixe-se a cabeça. Precisamos de ter vergonha do que aconteceu. Mas também precisamos de saber chorar.
Quem é que é capaz de ser racional perante uma tragédia? Alguém tem de ser sim, é para isso que temos quem nos lidere. É para isso que votamos. E os que ficam com os nossos votos não podem ser desprovidos de emoções. Mas também não podem sair impunes. Façam um uso do voto nas urnas mais útil do que o voto que temos feito uns contra os outros nas redes sociais.
Já chega de pedir desculpas. Não se pode matar gente na praça pública para voltar a dar-lhes vida. Não se pode chorar os mortos porque vimos imagens da morte, e depois criticar - generalizando - quem nos falou dessa morte. Porque se ninguém nos falar da morte, não vamos saber daqueles que a fintaram. E dos que ajudaram a fintá-la. E são poucos. Bons, mas poucos.
Portugal tem de se sentar no psicólogo e aprender a desabafar. Fechem-se as portas durante uns dias, depois logo voltaremos à onda de felicidade geringonçada. Porque, na verdade, ninguém estava preparado para o que aconteceu. E temos de estar preparados para mais tragédias, porque elas vão acontecer. E não é preciso ser especialista em incêndios para perceber isto.