Em Persona 5, os esforços de um grupo de adolescentes mascarados com poderes extraordinários — os Phantom Thieves — para “reformarem” uma sociedade japonesa corrompida por “desejos distorcidos” de poder e fama resultam em combates espectaculares numa dimensão paralela, o “metaverso”, onde aqueles desejos se projectam espacialmente. Os combates à vez entre as personae sobrenaturais dos jovens e a multitude de demónios em que se manifesta a profunda corrupção dos “adultos” — uma categoria que, no jogo, se apresenta como contra-imagem negadora das aspirações transformadoras de juventude — são intensos e, mais que tudo, expressões particularmente elegantes do estilo distintivo do director de arte da série, Shigenori Soejima, que, desta vez, optou por uma paleta de cores de predominância rubro-negra.
No entanto, é na realização de acções mais triviais da existência quotidiana que esta excelente série japonesa de “assunção de papéis” melhor permite assumi-los. Na realidade, em Persona 5, interpreta-se o papel de um estudante de liceu durante um ano, vivendo-se as rotinas deste, dia após dia. Passaremos parte importante do nosso tempo a assistir a aulas, em que o sonhar desperto do protoganista só é interrompido por questões que os professores lhe dirijam ou por mensagens de colegas no telemóvel. Outra parte em tarefas domésticas como cuidar de uma planta ou em arrumações e limpezas. Em cafés, banhos públicos, salões de jogos e espaços públicos, socializaremos, em interacções que marcarão o processo de construção da personalidade. Os interlocutores poderão ser outros adolescentes ou adultos inadaptados à “vida adulta”, como uma médica punk marginalizada pelos pares que aplica o princípio do it yourself aos medicamentos que prescreve; ou um político verboso, com convicções fundas na medida contrária à vocação para vencer eleições.
Neste sentido, o jogo tem ambições que podem considerar-se documentais, no seu projecto implícito de documentar em detalhe o viver adolescente — o que representa ser-se “jovem” na cidade de Tóquio, no século XXI? Nos diálogos, a palavra circula com facilidade e abundância entre amigos, num ritmo colorido que traduz a singular capacidade que tem a adolescência de converter, a um tempo, o banal em extraordinário e de trivializar os acontecimentos extraordinários em que os personagens se acham envolvidos. Uma das tarefas centrais no jogo, a de “provar a existência” dos Phantom Phieves à “sociedade”, é ela própria expressão de um dos terrores fundamentais da adolescência: o horror do anonimato, de uma existência desprovida de significado e reconhecimento alheio.
A ambição sociológica de Persona 5 converte-o também num fascinante retrato de Tóquio, onde nos perdemos com frequência, como flâneurs virtuais. A cidade pulsa no frenesim da turba indistinta que transita entre — presume-se — trabalho e casa, num ritmo urbano que sintetiza coreograficamente o sistema de produção de mercadorias e de anonimato, e murmura, de passagem, comentários avulsos sobre a “actualidade” que exprimem, por norma, receios colectivos e rumores contra-factuais. Neste cenário de irrealidade, que tolera o abuso sexual ou o plágio artístico para preservar a ilusão da fachada que sossega a consciência colectiva, será somente no “metaverso”, na dimensão “distorcida” do “real” em que actuam os Phantom Thieves, que a “realidade” se revela sem distorções. Por todas estas razões, quem jogar Persona 5 sem dúvida que subirá de nível no parâmetro “percepção do mundo”, já que o jogo tem a capacidade de provocar nos jogadores um dos impactos mais marcantes que se reconhecem à exposição às artes e à literatura: o poder transformador de ver o mundo pelos olhos de outros.