TERRAMOTOURISM: Lisboa abalada por um “sismo turístico”

Colectivo Left Hand Rotation passou quatro anos a ver Lisboa transformar-se à medida que o turismo crescia. Documentário TERRAMOTOURISM quer abalar a capital. É urgente mudar de estratégia, dizem os activistas espanhóis numa entrevista ao P3.

Vêem-se aviões e mais aviões, navios gigantes a cruzar o Tejo, autocarros turísticos, eléctricos, tuk-tuks, segways e outros semelhantes. Estamos em Lisboa, uma “cidade embrulhada para presente” oferecido aos turistas. Estamos em TERRAMOTOURISM, documentário do colectivo espanhol Left Hand Rotation, que há quatro anos começou a perceber (e acompanhar) a mudança da capital portuguesa. A comparação que serviu de mote ao filme é impactante — e o objectivo é esse mesmo: mostrar as semelhanças entre as ruínas do terramoto de 1755 e as actuais, produzidas à conta de um boom turístico em Lisboa.

Quando o colectivo começou a frequentar a Mouraria e a introduzir palavras como “gentrificação” e “turistificação”, deparou-se com habitantes em negação. A cidade, diziam-lhes, não corria o perigo de sofrer um abalo a esse nível. O documentário do grupo anónimo de activistas não é um manifesto anti-turismo, sublinharam numa conversa por email com o P3. É uma tentativa de fazer contraditório face a um discurso que faz do turismo a solução para todos os problemas. Um lembrete em relação ao direito à cidade, à falta de distribuição da riqueza, à precariedade no sector turístico.

Em 2017, o Left Hand Rotation vai levar um workshop sobre gentrificação a várias cidades de Espanha e da América Latina. O documentário — disponível na totalidade online — vai também percorrer várias cidades portuguesas e espanholas. Para pôr o tema na agenda.

Foto
Left Hand Rotation/ DR

Esta junção de terramoto e turismo, na origem da ideia do documentário agora lançado, começou em 2012. Nessa altura, este tema não era assim tão premente em Portugal. Porque decidiram agarrar esta ideia?
Já andávamos há algum tempo a trabalhar à volta do impacto da gentrificação e do urbanismo neoliberal na cidade, com um projecto chamado “Gentrificação: colonização urbana e instrumentalização da cultura” (em países de língua espanhola chama-se “Gentrificação não é nome de senhora”), um workshop que passou já por 14 cidades de nove países. Em 2012, estávamos a fazê-lo na Mouraria, analisando o projecto Ai Mouraria (“A Mouraria vai mudar para melhor”). Não estávamos a trabalhar na ideia do TERRAMOTOURISM, mas começamos a ter um olhar crítico sobre o que estava a acontecer ali e percebemos que o programa Ai Mouraria dava muita importância à “atração de turistas e visitantes” e aos “percursos culturais e turísticos” no bairro. Nos meses seguintes surgiu a ideia do TERRAMOTOURISM, como resposta à solução que se estava a desenhar para a revitalização do centro histórico de Lisboa, uma zona com muitos prédios abandonados (actualmente são quase quatro mil em toda a cidade). Era difícil não fazer uma comparação entre as ruínas do terramoto de 1755 e as actuais. Mas sobretudo era interessante pensar na posterior reconstrução da cidade, nas mudanças dos paradigmas social, cultural, urbanístico e político que o terramoto trouxe e que têm uma réplica na actualidade em forma de políticas de urbanismo neoliberal e processos de turistificação e gentrificação no centro de Lisboa.

Foto
Left Hand Rotation/ DR

Entretanto passaram quatro anos... Que evolução notaram neste período?
Como todos sabemos, a baixa lisboeta foi um lugar desertificado e abandonado nos anos 80, em parte pelo congelamento das rendas durante o salazarismo. Os proprietários não tinham dinheiro para reabilitar os edifícios. Dizia-se que ninguém queria viver na baixa. Nos processos de gentrificação há uma fase imprescindível que é precisamente o abandono de uma zona até à sua degradação. Assim, o preço do metro quadrado baixa tanto que se torna rentável para os privados investir nessa zona. Isto transforma o abandono numa grande oportunidade para o lucro, muito cobiçado pelas empresas imobiliárias e pelas entidades financeiras. Produz-se a revalorização de um bairro e, de seguida, muitos vizinhos são despejados porque, com a subida das rendas, não podem continuar a pagar o seu “direito à cidade”. Nos últimos anos conhecemos duas coisas que são chaves para entender o que se está a passar. O boom turístico (seguramente provocado pela promoção de Lisboa como uma marca no estrangeiro, uma tentativa de limpar a imagem de um país em crise económica, embora saibamos que Lisboa sempre foi muito visitada) e a chamada “nova lei do arrendamento”, que pretende actualizar as rendas e os preços das casas no mercado e tem provocado inúmeros desalojamentos de famílias. A solução para a desertificação e abandono da baixa não passa por convertê-la num contentor de lazer e consumo, que mais se assemelha a um parque temático do que a um bairro habitado. Hoje privatiza-se o património municipal e reabilitam-se edifícios para construir hotéis e apartamentos de luxo. Por que não se reservam esses espaços para habitação social em áreas centrais? Para lá do Bairro Alto, área que sofreu os efeitos da gentrificação há décadas, podemos falar nos últimos anos da Mouraria. E também de Alfama, que começa a ter números preocupantes: 56% da habitação social foi convertida em apartamentos para turistas. Além disso, assistimos em toda a cidade a uma subida de 30% do valor das rendas nos últimos três anos, algo insustentável para os habitantes. Lisboa sofreu nos últimos anos uma série de transformações que noutras capitais europeias demoraram décadas a acontecer. Esta velocidade está a provocar um enorme desequilíbrio e a favorecer um urbanismo selvagem.

O documentário é crítico desta realidade, desde o título até ao último minuto. Qual a vossa posição sobre aquilo que está a acontecer em Lisboa neste momento?
É importante sublinhar que isto não é uma documentário contra o turismo. Todos, em algum momento das nossas vidas, somos turistas. Nós próprios o fomos em Lisboa há alguns anos. A nossa primeira visita aconteceu em 1980. O problema é a gestão que se está a fazer da cidade, pensando exclusivamente no visitante, ou seja, a turistificação de Lisboa. Tende-se a exaltar o turismo como motor económico, mas raras vezes se fala dos custos sociais de implementar uma economia virada em massa para o sector turístico, do impacto que este tem sobre o mercado de habitação, da falta de distribuição da riqueza gerada, que tende a acumular-se nas mãos dos grandes investidores, do trabalho sazonal e precário neste sector. No fundo, dos riscos de construir uma cidade à volta de uma indústria cujos ciclos de vida variam muito.

Qual o vosso objectivo com este filme?
O documentário faz um paralelismo entre o terramoto de 1755 e o actual panorama de aumento de despejos impulsionados pelo crescimento do turismo. O terramoto destruiu grande parte de Lisboa, o turismo está a destruir o direito à cidade. Em 1755 originou-se uma mudança dos paradigmas cultural, político, social e urbanístico que deu origem ao iluminismo mas também ao despotismo iluminado, legitimando um novo modelo de cidade híper regulada, cujo legado é uma zona praticamente desabitada e em vias de se transformar num não-lugar permanente. A turistificação está a produzir algo parecido — e é isso que contamos no documentário, numa perspectiva subjectiva, com diversos materiais: registo documental, intervenções no espaço público, imagens de cinema ou outros materiais de arquivo. Insistimos: o documentário não é, de forma alguma, um manifesto contra o turismo, nem defende uma ideia romântica de uma autenticidade perdida de Lisboa. Procura alertar para a perda do direito à cidade. Conhecemos bem as vantagens que o turismo pode trazer, mas é preciso, face ao positivismo exagerado que domina alguma opinião pública, fazer um manifesto dos aspectos negativos que surgem quando a cidade começa a ser gerida em função do turismo.

Sentiram nos cidadãos a energia e vontade de mudar ou, pelo contrário, cruzaram-se com pessoas adormecidas e resignadas?
Os processos de gentrificação impulsionados pelo turismo são rápidos, e têm uma etapa inicial em que parecem positivos. São identificados como uma certa ideia de progresso, porque projectam uma imagem de melhorias na cidade: mais limpeza e segurança nas ruas, reabilitação do património arquitectónico, etc. Há muitas pessoas que ainda não vêem o que está a acontecer, sobretudo quando falamos da baixa pombalina. Para essas pessoas, o TERRAMOTOURISM talvez faça mais sentido daqui a uns três anos. Lembro-me que fizemos várias entrevistas na Mouraria em 2012 e quando falávamos de gentrificação muitas pessoas diziam-nos que isso não podia acontecer em Lisboa. Agora, com o boom turístico e a chegada em massa de capital privado, quase todas as semanas há debates e encontros que relacionam o turismo com a gentrificação ou plataformas de protecção do direito à cidade. Felizmente as pessoas estão a começar a mobilizar-se.

Como se consegue um ponto de equilíbrio: conseguir uma cidade dinâmica sem a descaracterizar e prejudicar os cidadãos?
A resposta deve ser articulada com a comunidade.Não nos consideramos especialistas nem opinion makers e acreditamos que cada cidade deve encontrar as suas próprias respostas, não apenas “importar” as soluções que outras cidades estão a aplicar face à turistificação, ainda que seja interessante saber o que se está a fazer noutros lugares do mundo. 

Esta realidade também existe em Espanha. Quem está a responder melhor a este problema?
Todas as cidades são diferentes e nem sempre é bom ter como referência o que acontece noutras capitais. Barcelona está sempre no centro das atenções, ao ponto de existir a expressão “Modelo Barcelona”. Por um lado o urbanismo neoliberal vê a cidade como exemplo de renovação e revitalização através do turismo, mas por outro a massificação dos últimos anos (30 milhões de turistas em 2015) fez com que muitos cidadãos não queiram mais turistas. Há manifestações contra os apartamentos Airbnb, contra os próprios turistas, e isso já levou a situações que roçam a xenofobia. A nova presidente da câmara provém de movimentos sociais e tomou algumas boas decisões, como multar os bancos que têm casas vazias e fazem especulação. Quanto às medidas que se estão a tomar em relação ao Airbnb em Barcelona temos mais dúvidas porque, como em Lisboa, o arrendamento de apartamentos é muitas vezes uma ajuda económica imprescindível para algumas famílias.

Sugerir correcção
Comentar