Para quem viu, e para quem não viu, se há ponto a realçar no filme "A Gaiola Dourada", é o facto de lá fora dizermos sempre que sim. Porquê? Porque precisamos de dizer sim. Porque cada centímetro do nosso corpo sabe tão bem o significado de não pertencer a um solo, a uma terra, a uma nação cujo cheiro, cuja humidade no ar, cuja cultura, costumes e pessoas nos são estranhos desde que os primeiros raios de luz nos acordam até à vitória final do cansaço sobre este corpo, quando a noite ainda está por cair e o jantar por comer.
Porquê? Porque lá fora dizes sempre que sim, sim a dormir cinco horas todos os dias, sábados e domingos incluídos, sim a acordar às três da manhã, sim a trabalhar por dois, ou três, sim a trabalhar durante as férias, mesmo se as mesmas não são pagas, sim a fazeres o trabalho dos outros quando os outros assim o entendem apenas porque os outros nasceram aqui e tu não, sim a começar a trabalhar às 7h00 e sim a chegar a casa às 20h00, sim a não poder ter filhos, sim a não querer ter filhos (para quê, para isto?), sim a tudo e não a nada, e sim apenas porque sim, sim a deixares toda a gente para trás, sim a ficarem-te com o passaporte e às vezes o ordenado (para não te armares em esperto), sim a não ter dinheiro para comprar carne, sim a todos quantos vêm cá para fora à procura “do tal emprego“ e usam a tua casa como se um aeroporto fosse, sim ao telefone esperto e ao “cecáipe“ onde derramo estas lágrimas e sim ao “uátsápe“, ao “fâisse“ e a todas as aplicações cujas imagens de outras paragens são isso mesmo, imagens de outras paragens, nas quais já não podemos entrar, tocar, abraçar, beijar, viver.
Há uns dias soube ter o Instituto de (des)Emprego e Formação Profissional o seguinte "slogan": “E se o teu emprego de sonho fosse num país europeu?“ Ora bem, senhores do Instituto de (des)Emprego, como somos todos bons entendedores vou-me ficar por meias palavras, porque só assim consigo compreender este vosso servilismo para com os países ditos ricos dessa Europa, os quais, estou certo, estarão eternamente gratos pela violência perpetrada de toda a vez que mais um português emigra ao sabor da sorte, da maré e do destino para os braços vorazes de economias denominadas de primeiro mundo. Porque primeiro mundo só se for no papel, ou não fosse o trabalhador emigrante partilhar a casa de três quartos com mais 11 “refugiados“, onde a sala de estar mais parece as Nações Unidas e a casa de banho é lá fora, para mau grado dos onze graus negativos mais o rabo colado à sanita no meio de uma noite de Inverno, enquanto se fumam três cigarros em fila apenas para manter o peito e as mãos quentes. Porque precisamos do dinheiro. Porque de onde vimos não há dinheiro, só fome. E por isso dizemos que sim, até quando Deus quiser. Porque se não disseres que sim, há quem diga no teu lugar, e por menos.
No filme “A Gaiola Dourada“, o Zé e a Maria, estabelecidos na vida, na língua e na emigração, têm a sorte de uma herança, uma casa e umas terras lá na terra, e por isso decidem dizer que não e voltar a casa. E entre a queda do Carmo e o espalhanço da Trindade corre um filme inteiro e duas horas de sonhos. Também eu gostaria um dia de dizer que não, mas heranças assim só nos filmes, e voltar a casa só quando fecho os olhos para, entre duas horas e meia de sono, voltar a correr na praia enquanto ao longe me vês a jogar à bola, como se não houvesse amanhã e eu não tivesse de acordar.