Mário Cruz combate a escravatura infantil com um livro de fotografia
A reportagem “Talibés, Escravos dos Tempos Modernos” valeu a Mário Cruz a distinção no último World Press Photo. Se a campanha de “crowdfunding” que agora arranca correr bem, será também o título de um livro que o fotógrafo vê como uma forma de provar o que se passa nas escolas corânicas do Senegal
Após o anúncio do primeiro prémio na categoria de Temas Contemporâneos do World Press Photo (2015), a vida de Mário Cruz entrou “numa sucessão de eventos felizes”. O ensaio fotográfico sobre a realidade dos “talibés” nas escolas corânicas do Senegal e da Guiné-Bissau foi publicado na “Newsweek” e na CNN e somou mais dois prémios: o terceiro lugar do Pictures of the Year International (POYi) na categoria reportagem e o Estação Imagem. A história dos rapazes, entre os cinco e os 15 anos (“talibés”), que vivem em escolas islâmicas e que, a pretexto de uma educação corânica, são obrigados a mendigar pelas ruas, vítimas de violência e de abusos sexuais por parte dos alegados professores era — e continua a ser — desconhecida para muitos. Para que a visibilidade conseguida pelas distinções não se perca com o tempo, o fotógrafo português quer editar um livro com as fotografias a preto e branco e lançou para isso uma campanha de “crowdfunding”.
Mário Cruz fotografa contra a indiferença e as distinções que tem conseguido, nos últimos anos, acabam por dar visibilidade às situações que denuncia. Em 2014, o “New York Times” publicou o trabalho “Roof”, cujo propósito passava, como contou ao P3, por “documentar a vida de pessoas que, por falta de apoios ou por terem ficado desempregadas, não tiveram outra solução a não ser encontrar um tecto que não era o seu” em Lisboa. No mesmo ano, venceu o prémio de fotojornalismo português Estação Imagem com a reportagem “Cegueira Recente”, na qual abordou o dia-a-dia do Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, também em Lisboa.
No caso de “Talibés, Escravos dos Tempos Modernos”, o português de 28 anos vê o livro como uma forma de provar a escravatura contemporânea a que se assiste naquele país africano. “A falta de provas e testemunhos contribui para o aumento da tradição”, diz ao P3, e foi uma das razões que o levou a visitar Dacar. O livro que agora pretende editar “não vai ficar apenas numa galeria online”. “Tem poder”, considera o fotógrafo, e pode pressionar a acção das autoridades locais e internacionais. A lei que regula estas falsas escolas, continua o autor, “está por ser aprovada no parlamento” e a violência contra os jovens “talibés” segue por travar.
A campanha de “crowdfunding”, online desde esta terça-feira, 10 de Maio, na plataforma Kickstarter, tem a duração de um mês e os 24.500 euros como objectivo final. As modalidades de contribuição começam nos 22 euros, com direito a menção na lista de apoiantes do livro, e podem chegar até aos 1.758 euros. Um exemplar autografado de “Talibés, Escravos dos Tempos Modernos” pode ser encomendado por 65 euros, com entrega prevista para o próximo mês de Outubro.
Disponíveis estarão apenas 1.000 exemplares do livro, impresso em Istambul pela editora FotoEvidence, com 70 fotografias a preto e branco da autoria português e comentários em inglês e árabe. Este não é mais um livro fotográfico, assegura o jovem português. Além das imagens, as páginas vão conter “informação específica da última década”, dados provenientes de relatórios e “testemunhos de senegaleses”. Mário tem trabalhado ainda com a Human Rights Watch na procura de provas desta violação dos direitos humanos. “O livro vai ser construído de forma apelativa para questionar o que lá se passa, com um design surpreendente”, define.
Já na primeira semana de Junho, Mário viaja até à Guiné-Bissau — “um dos países que mais sofre com o tráfico de crianças” — para expor as fotografias na Casa dos Direitos, na capital do país. Até lá, vai manter-se “muito concentrado” na campanha de “crowdfunding”. “O tema foi discutido no Senegal, apareceu na imprensa local, as ONG recebem pessoas que querem ajudar, mas as imagens não chegam até lá. Muitas destas famílias não têm acesso à Internet nem as facilidades que nós temos”, acredita o fotógrafo da agência Lusa. É por isso que a distribuição da obra pelas bibliotecas e escolas do Senegal e da Guiné-Bissau é tão importante. “Estando presente, o livro vai contribuir para o acesso à informação: um sistema de educação outrora respeitável é agora um meio de exploração infantil.”