Consumado que está no Senado brasileiro o golpe parlamentar contra um governo e não contra qualquer crime, levado a cabo por uma quadrilha de criminosos comprovados, importa olhar para trás para perceber o plano de futuro o povo brasileiro.
Recuemos às origens do Partido dos Trabalhadores (PT). O golpe militar e a ditadura brasileira que ocorreu entre 1964 e 1985 tiveram como um dos seus primeiros objectivos impedir a defesa de interesses e reivindicações materiais de um operariado emergente no Brasil. Os militares, uma vez no poder, decapitaram as lideranças comunistas e de esquerda que existiam no movimento sindical, tornando-o uma ferramenta fantoche para impedir a contestação laboral.
Depois de uma primeira geração de dirigentes sindicalistas ao serviço da ditadura, entram novos dirigentes, entre os quais Lula da Silva, que são empurrados para uma radicalização pelos trabalhadores. A onda de greves de 1978, 1979 e 1980 na cintura industrial do ABC de São Paulo é duramente reprimida mas assinala o início do fim da ditadura militar e emergência de poder laboral: Lula da Silva torna-se um exímio negociador, obtendo concessões e cultivando uma cultura de reformismo social. A ascensão do PT e da agenda progressista teve como importante consequência uma pacificação social entre classes no Brasil e a emergência de um modelo petista de crescimento, que funciona durante mais de uma década, com elevada dependência do aumento dos preços das mercadorias e da expansão do consumo interno. A procura interna é dinamizada pelo aumento dos salários e poder de compra dos trabalhadores e pela transferência de rendimentos para as classes mais pobres através do Bolsa Família. As exportações de bens primários no Brasil crescem fortemente entre a primeira eleição de Lula (2002) e 2011, mas desde então a situação inverte-se. Mas o PT cultivava outra aliança, com outra parte da sociedade: através das taxas preferenciais de juros para as grandes empresas construtoras e do agronegócio, a chamada “Bolsa Empresarial” consome mais do dobro daquilo que era entregue aos mais pobres.
Em 2013 começam manifestações gigantescas no Brasil, de longe as maiores até hoje. As reivindicações são claras: uma melhoria da qualidade de vida, aumento do salário indirecto, isto é: transportes, saúde, educação. A precariedade laboral é questão central, encontrando-se a determinado momento em paralelo com o que se passa na Europa. Entre 2013 e 2015 há um reignição da mobilização social do Brasil, um pico grevista, com greves nacionais de bancários, de trabalhadores do turismo, segurança, educação, dos transportes, e dos trabalhadores precários quer no Estado, quer no sector privado.
Com estas evoluções, a burguesia brasileira não tolera mais uma burocracia sindical que não controle as bases. A paz social está ameaçada. O PT já não pode ser a liderança do Brasil, mesmo que Dilma Rousseff tenha sido eleita pela maioria da população. Olhando para o resto do mundo, para o ciclo global da austeridade, nos Estados Unidos e na União Europeia, a elite brasileira decide que a precarização é o garante de um novo ciclo de acumulação de riqueza pelos 1% e de uma retirada de direitos e salários directos e indirectos dos trabalhadores.
Nas últimas eleições, o PT fez uma campanha assente na promessa de melhorias nas condições de vida, atacando o maior partido da oposição, PSDB, por planear reverter benefícios sociais instituídos pelos governos anteriores, nomeadamente o Bolsa Família. A sua vitória foi assegurada nesta base mas, assim que começou o mandato, emergiu a defesa da austeridade, com os sempre presentes objectivos de redução da inflação, dos cortes nos gastos sociais e o aumento das taxas de juros. Este pacote económico lançou na recessão uma economia que finalmente era atingida pelas ondas de choque da crise financeira: reduziram-se investimentos, baixaram-se salários e duplicou o desemprego.
À crise económica aliou-se a crise de impopularidade e abriu-se espaço para o vergonhoso processo de impeachment de Dilma Rousseff, alimentado por uma justiça partidarizada, por um processo Lava-Jato à disposição do "establishment" económico e por uma total degradação da vida política que antecedia em muito o actual governo.
O golpe em curso em Brasília foi a enxurrada que cavalgou todas as debilidades do PT, ao mesmo tempo que expôs a natureza ultrareaccionária das forças políticas de direita – coronéis e jagunços, bispos e papas de igrejas e seitas várias, militaristas, rambos e comandos da morte. A explosão de partidos de direita que mais não são que escritórios de interesses de negócios, com corrupção individual e colectiva, teve a sua expressão máxima na vergonhosa votação da Câmara de Deputados, que perdurará na memória não só do povo brasileiro como de todos os outros países. A falta de credibilidade da “elite” brasileira ficou patente aí, nesse momento de golpe nem fingido, de teatro ensaiado. A imprensa privada é o ultimo reduto que a burguesia da agro-indústria e da finança tem para exprimir uma aparência de intelectualidade: é a principal força e arma de legitimação do golpe, com a Rede Globo a dirigir as operações, como fez no golpe militar de 1964.
Depois do golpe parlamentar, seguirá o golpe no poder. E terá uma marca: crise. Tudo pela crise e nada contra a crise. Privatizar. Terceirizar. Externalizar. Cortar, poupar, sanear, emagrecer. Na Europa conhecemos bem esta pauta e aquilo a que ela conduz. Troikas de empobrecimento em massa, despedimentos recorde com as elites cada vez mais ricas, espezinhando as populações e a distribuição da renda.
Será no mundo do trabalho que se concentrará o mais pesado do ataque, num mundo do trabalho com uma cultura sindical forjada muito mais na negociação do que confronto. A terceirização, a precarização será o baluarte económico de um governo Temer ou de outro governo de direita que o possa substituir. E é aí que existem mais possibilidades de conseguir derrubar o golpe: no combate à precariedade e num aumento real da distribuição da riqueza entre a população.