Quando o fim paira

Um dia, também nós teremos – esperamos – uma horda de gente a chorar o nosso desaparecimento

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Duarte Amado

No momento em que se sabe que uma grande estrela está morta, há um fenómeno estranho, agora que a democratização da opinião é simulada nas redes sociais: os "feeds" de notícias entopem com vídeos ou canções ou notícias sobre o desaparecimento do astro, seja da música, do cinema ou de outro qualquer ramo que nos inspire mecanismos de admiração. Aí, a paisagem de gente está partida ao meio: alguns, a provável minoria, compadecem-se com a queda do mito vivo e consternam-se com a ideia de o seu mundo prosseguir sem a presença do tal astro — ainda que, convenhamos, 99,9 por cento destas pessoas nunca tenha convivido com o morto em causa; os outros, a maioria a reboque, não quer ficar para trás nem demonstrar a sua ignorância evidente, e portanto, simula que conhece com uma profundidade indescritível toda a discografia ou filmografia do falecido, imitando uma dor de proporções titânicas — as imitadoras pouco importam para a presente discussão. Foquemo-nos, antes, nos genuínos consternados.

Sempre me fascinou esta pancada que todos temos com o desaparecimento de um sujeito relevantíssimo para a existência da Humanidade. 2016 tem sido pródigo em “name-dropping” das idas para o além, o último contemplado foi Prince. O facto de nada, na nossa vida comum e quotidiano, mudar em termos práticos, faz-me dar voltas e voltas à cabeça sobre o motivo que nos leva a carpir uma morte destas. É certo que lamentamos não poder ter de novo o empolgante momento em que ouvimos uma música nova de um ídolo, mas creio que uma das razões mais determinantes para o choque prende-se com o efeito espelho que verificamos naqueles que admiramos: um dia, também nós desligaremos o corpo que nos alberga. Um dia, também nós teremos — esperamos — uma horda de gente a chorar o nosso desaparecimento.

O confronto com essa realidade, na qual a maioria de nós não pensa com frequência, faz-nos reflectir um pouco melhor sobre a nossa própria finitude. Este confronto não deixa de ser importante — é, aliás, do meu ponto de vista, imprescindível — uma vez que, mesmo após anos e anos e anos de milhares de milhões de homens vivendo em diálogo com a História que os precedeu, ainda não existem respostas. Günter Grass é a demonstração (já não tão) viva disso mesmo: o seu último trabalho, Sobre a Finitude, tem poucos pontos de interrogação, mas preenche-se das inúmeras perguntas que circundam a razão da existência, o lugar (ou a ausência dele) para onde vamos depois do fim, o que sentimos no momento da morte, por aí fora – tanta linha, tanta verdade. Leiam-no.

Não, esta crónica não dá respostas — nem sequer se atreveria a alvitrar uma simples ideia sobre o pós-fim de tudo isto. Talvez o segredo esteja numa metáfora que Ricardo Araújo Pereira partilhou comigo há meia dúzia de dias: somos um condenado à morte que percorre o corredor até chegar à cadeira eléctrica e, se caminharmos enquanto rimos, o decurso torna-se menos penoso. Aproveitemos.

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