“E não chegámos nunca nem sequer perto do poder, senão... senão sinceramente não sei o que teríamos feito com ele”, disse-me uma vez um informante (“informante” é o que os antropólogos chamam às pessoas que falam connosco). “O que teríamos feito com ele”... há anos que penso naquilo. Damos voltas e voltas e voltas para descobrir o que os clássicos já nos tinham dito há séculos, derramando-o cheios de precisão e elegância em livros que já não lemos: como é que dizia o tio Chico Maria?! “O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”, duzentos anos depois ainda não ouvimos, ainda não aprendemos, ainda não caiu a ficha.
O que teriam feito com o poder, perguntava-se o meu amigo... o que teria o poder feito de vocês pergunta-te antes, camarada!
Organizemo-nos: o poder é violência; física, psicológica, simbólica, o poder é sempre agressão (Lorenz conta e ensina). A capacidade de dobrar o outro à nossa vontade é sempre uma espécie de violação, e isso não é acessório à natureza do monstro, isso é a sua essência própria, venha lá em que forma for: colegial ou autoritário, representativo ou plutocrático, Ceausescu ou Pinochet, negro ou vermelho ou cor-de-rosa ou cor-de-burro-quando-foge o terror sabe sempre o mesmo independentemente da época ou da geografia, sempre igual para o que discorda... para o alvo das bastonadas das “forças da ordem”, das chaimites cuspideiras de gás lacrimogéneo, das paredes e grades dos cárceres, dos canos das espingardas dos pelotões de fuzilamento.
O poder tem uma natureza, uma lógica própria, que é a do terror e da cupidez. O Grande Irmão não consegue nunca ultrapassar o quão excepcional (fantástico, divino) é; nunca compreende os tortos, os incapazes do mínimo da aquiescência, os líricos das perguntas e da resistência. Vê-os necessariamente como escolhos, como obstáculos de bloqueio, como traidores ao óbvio e correcto, como ligeiramente menos que humanos, lixo respirante. O melhor que podemos dizer da nossa específica ditadura é que é pouco totalitária, que é só ligeiramente feroz.
E o que dizer dos pequenos candidatos a Grande Irmão. Eunucos esfaimados, ceguinhos de todo, fracos e gulosos, sempre prontos a descer cada vez mais para subir cada vez menos, sempre tão tristes e sozinhos... e nunca dignos de dó. Sem perceberem que o exercício do poder, por mais minúsculo e bem intencionado que seja (bater na criança para ela não meter os dedos na tomada) nos contamina indelevelmente, nos obriga a lavar as mãos depois, nos carrega de dor por mais lógico que fosse que nos enchesse de probidade.
E se calhar o poder não tem solução, se calhar é só mesmo isto assim... ai se eu soubera como isto era, nunca viera aqui ter. Às vezes sinto-me dum outro qualquer futuro.