Da aldeia para o mundo

Gosto de fechar os olhos em muitas alturas, de sentir o ritmo exagerado das coisas que precisam do tempo que o tempo não tem. Mas no fim, preciso de voltar. De abrir os olhos e ter tempo para sentir, escutar ou ouvir

Foto
Marco Gil

Fechei os olhos. Ouvi buzinas, um trânsito caótico, senti gritos, passos apressados, dois carros que chocaram, um taxista que falava num tom alto, mais buzinas. Fumo no ar, é da fábrica do cimento, o barulho do metro, um autocarro preso no trânsito, pessoas de rosto apressado e passos perdidos. Um relógio que não pára e tempo escasso. Outro choque, um veículo ligeiro com um pesado de mercadorias. Ouço por fim o som de um pássaro... vem do zoológico, confusão no metro, dois roubos em 10 minutos, eram carteiristas. Pressa, passos ainda mais apressados, alguma intranquilidade, duas horas numa fila de trânsito e ainda faltam 10 km para o trabalho.

Abri os olhos. Ouvi um despique entre uma cotovia e um cuco, no cimo da árvore que tinha junto a mim, são espécies raras de pássaros, mas não são raras aqui. Estão a tentar perceber qual deles tem o melhor chilrear, um rasto de avião que não traz barulho, vê-se o rasto feito pela limpidez de um céu como poucos, dá quase para perceber qual o corredor aéreo que tomou. Silêncio, outra vez mais silêncio, mas o padeiro estraga tudo com a buzina durante dois minutos que parecem duas horas. Um coelho que foge pela encosta e nos retira a inquietude.

O sino da igreja que toca ao ritmo das horas que parecem dias e ecoa com espaços de 30 minutos. Respiro... é ar puro, expiro e é vapor do frio. Olho em frente e as cores multiplicam-se com o nascer do dia. O padeiro foi-se e a cotovia também, mas chegou um melro, olha na mesma direcção que eu, sem que o horizonte nos castigue pelo "voyeurismo" daquele instante. 

Passaram duas horas, mas podia ser eterno.

Pego na mota e já não vou demorar cinco minutos a chegar a casa. Tenho diante de mim um formigueiro, são milhares que entram no ninho e não quero cometer um massacre. Mas nem buzino para elas se desviarem. A formiga rainha percebe e toma conta do rumo da outras. Vou dar comida à raposa que me espera diariamente no mesmo sítio que delineámos... quando o coração nos uniu há três anos. Ela já lá está, sou sempre que me atraso. Hoje atrevo-me a dar-lhe comida na boca, a minha coragem pode retirar-lhe astúcia a caçar, mas ela sabe que na ausência das presas pode contar sempre comigo.

Volto para casa, deixei migalhas de pão no alpendre azul para três alvéola-citrinas que madrugam sempre por ali nestes últimos meses do ano.

Gosto de fechar os olhos em muitas alturas, de sentir o ritmo exagerado das coisas que precisam do tempo que o tempo não tem. Do silêncio confuso e do multiculturalismo de expressões feitas de pessoas. Mas no fim, preciso de voltar. De abrir os olhos e ter tempo para sentir, escutar ou ouvir.

Sugerir correcção
Comentar