“Desce o escuro da noite sobre a cidade”... lugar-comum desconchavado, a escuridão não desce, a escuridão sobe. Dos cantos que até de dia são sombrios vai lentamente lambendo as paredes de baixo para cima, vagarosamente escondendo as matizes, os tons das coisas e depois, depois de meio-minuto de lusco-fusco Pum: e é noite cerrada.
E à noite sai à rua a fauna toda... outro disparate: a fauna nocturna não se materializa com o pôr-do-sol. A noite é maré baixa, à medida que os bons burgueses trancam as portas e correm os estores, na rua sobramos nós, as feras todas: a chungaria, os bêbados, as putas, os artistas, os “profissionais da noite”, os bandidos, os carochos de toda a raça, os “dealers”, os sem-abrigo debaixo das mantas, os jogadores, os taxistas e as enfermeiras do turno morto, os travestis arrepiados do frio, os faquistas, os carteiristas, os turistas perdidos e sem medo, os subversivos, os grupos de amigos em festa a brandir garrafas meio-cheias, os poetas, os paisanos mal-disfarçados nos seus blusões de cabedal roçado, os músicos, os místicos, os graffiteiros sem autorização, três ou quatro bons burgueses em busca da satisfação de desejos inconfessáveis e um tipo que só veio passear o cão.
A noite é só maré baixa, só nos torna mais óbvios sem o mar de gente que alaga os dias; mas não se enganem, nós estamos entre vós mesmo à luz, silenciosos, discretos, ovinamente sossegados, a olhar-vos, a estudar-vos, às vezes para vos fazer mal... às vezes não. Mas à noite há sempre mais medo, olhamo-nos desconfiados como se à noite houvesse alguma coisa a rastejar que não caminhasse direita e escorreita, sorridente e descarada, durante o dia. Então não aprenderam com o tio Sérgio que o lugar mais escuro é sempre debaixo da luz?!
À noite somos todos mais honestos só por sabermos que somos todos mais ou menos bandidos, mais ou menos marginais, ou é só impressão minha? Com duas semanas de noite safamo-nos como senhores, com vinte anos disto cheiramos sarilhos, móinas e cagadelas de cão no escuro a dois quarteirões de distância. Sabemos isto tudo e sabemos ainda por cima que sabemos sempre pouco, que por melhor que leiamos a rua nunca sabemos quem é o profissional da pancada, o bófia sujo, o violador... saber que não sabemos é a máxima descoberta, e só isso põe-nos acima dos diurnos que acham que o estado tem o monopólio da violência, legítima ou não.
Sento-me nas escadas da igreja de São Roque, a sentir o frio que se solta do chão feito de pestíferos, gozo a solitária com a garrafa de branco, o par de amigos cantantes e dançarinos, as miúdas das “selfies”, os senhores agentes entediados, o casal improvável a entrar discreto na pensão, os porteiros seráficos e estúpidos como armários, os paquistaneses tristes no lancil da loja, os “profissionais” que escorregam na esquina seguinte à vista do carro axadrezado da Municipal, os velhos hippies alemães confortáveis em todo o lado, os novos hipsters sempre cheios de medo disfarçado, o menino que ao telefone insiste com o novo Cais do Sodré por contraponto ao velho Bairro, o bom pater familias a escapar discreto da “sauna” (amanhã é dia de missa), o fadista com a caixa da guitarra, todos lindos, únicos, luminosos no meio do escuro... e lá em cima, por cima da luz artificial e das nuvens e da poluição e da gente toda, continuam a brilhar as estrelas, luz velha, as nossas estrelas.