O Raúl

O Raúl só precisa de comer, precisava de um rumo, de ajuda e de trabalho. Eu, por acaso, vi-o, paguei-lhe uma sopa e fotografei-lhe um rosto que não tem vergonha, tem apenas fome

Foto
Marco Gil

Não gosto destas fotografias, mas elas são necessárias. São mais que um alerta, são reais e acontecem.

Normalmente os sem-abrigo têm um rosto e eu conheço o do Raúl. Apesar de ter uma vida a preto e branco, eu trouxe-lhe a fotografia a cores. Não tem casa, não tem trabalho, rumo, ou sapatos... sobrevive nas ruas de Lisboa. Lado a lado com a lúxuria ou a avareza, com a excentricidade e a gula. Ninguém o vê, poucas pessoas lhe "passam cartão" — o único que ainda lhe é útil é o que utiliza para se cobrir à noite, por cima das condutas de ar.

O Raúl, por vezes, só precisa de comer, precisava de um rumo, de ajuda e de trabalho. Ele nasceu em Queluz, mas continuamos a ignorá-lo e se pudermos ainda nos desviamos dos sítios por onde ele passa ou apenas onde ele está. Falei com ele, porque ele fala, como os outros. Não consome droga ou álcool, não mete medo, nem assusta ninguém. Perdeu apenas o rumo da vida e ninguém o "vê ".

Amanhã as autarquias têm mais um muro para construir, onde vão pôr um vaso com uma planta que está murcha daqui a três emanas ou vandalizada daqui a quatro.... e enquanto isso o Raúl continua a passar fome, sem que ninguém se dê conta que ele existe.

É bonito alugar um jipe e ir buscar refugiados sírios, pedir ainda ao amigo que nos passe a notícia no Telejornal, para podermos mostrar que vamos ajudar, porque ajudar não chega, precisamos de mostrar que o vamos fazer. E com isso até pode surgir o patrocínio que nos pague a gasolina daqui à Croácia e é uma viagem do catano porque ainda tem paisagens pelo meio. Tiramos umas fotos para pôr no Instagram, mas sem nunca esquecer a "hashtag" que vais mostrar ao pessoal que vamos ajudar os refugiados.

Nesse tempo todo o Raúl está ali. Provavelmente no arranque para Croácia até nos cruzámos com ele à saída de Lisboa, mas nem o vemos. Ele não traz "share", ele é só o Raúl. Eu, por acaso, vi-o, paguei-lhe uma sopa e fotografei-lhe um rosto que não tem vergonha, tem apenas fome. Mas os pés são o suporte do homem, depois da alma e do coração, foi por isso que lhe trouxe os rastos da vida ténue, na sombra, íngreme e esquecida dos outros ou dele mesmo. De Lisboa com a realidade...

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