À primeira nota, a música ainda não é música. A primeira nota é um singelo ruído acidental. É a segunda nota que faz a diferença na melodia: sem ela, a nota que a precede não tem sentido lógico. A vida, tal como a música, precisa dessa referência, desse passado. Sem passado, a existência é vã, é uma mera sobrevivência à deriva que não sabe sobre que passos caminhar.
A geração de hoje, mais do que alguma vez na história, é aquela que maior acesso tem à informação e, paradoxalmente, é a que menos sabedoria possui. Por um motivo que ainda falta explicar, a geração que nos antecede não soube transmitir-nos, por falta de conhecimento ou de paciência, as referências culturais, políticas e sociais que tanto nos fazem falta. E, assim, ficamos a nadar num oceano infindável de ruído no qual não sabemos movimentar-nos.
Há dias, em conversa com amigos jornalistas, pareceu-nos evidente que a bandalheira reina: poucos são sabedores do paradigma em que todos vivemos e, pior ainda, os que mais sabem ainda incitam à proliferação do caos. É no caos que reside a possibilidade de domínio do outro. O medo torna-se vencedor e o que melhor doma a palavra, melhor doma a vida dos seus pares. Não admira que seja habitual deixarmo-nos governar por pulhas e sacanas — e não, não falo (exclusivamente) de políticos.
Podemos, todavia, contrariar este marasmo. Depende de nós e não será fácil, mas está ao nosso alcance. Em primeiro lugar, não podemos renegar o lugar de onde vimos, enquanto humanidade. Precisamos de conhecer a cultura que pisou a Terra antes de nós — e olhem que já cá estamos há muito, muito tempo —, compreender os motivos que a tornam melhor do que noventa por cento das coisas com que perdemos tempo, produzida por contemporâneos nossos. Permitam-me uma sugestão: Porquê Ler os Clássicos, de Italo Calvino, recentemente publicado pela D. Quixote, é um extraordinário ponto de partida, por permitir-nos saber mais sobre alguns dos marcos da literatura mundial. Depois, fazer o mesmo com teóricos políticos, obras cinematográficas, gigantes da arte, processos históricos que nos conduziram até aqui.
Não há condução sem espelhos retrovisores. Precisamos de saber, constantemente, o que acontece longe do nosso horizonte de visão periférica. Precisamos de conhecer o ambiente que nos trouxe até aqui, é urgente perceber de que se trata, afinal, ser humano. Apenas este método nos levará a um lugar mais confortável, compassivo e coerente com aquilo que pretendemos para nós mesmos. Apenas assim construíremos um futuro que orgulhe os nossos antepassados. Trabalhemos, pois então.