A vida dá cada volta que apenas ao final de uns anos lhe podemos apreciar a graciosidade dos movimentos. Conheci o João no início de 2008 e, para desespero da professora de Inglês, tomávamos demasiado tempo das aulas a discutir assuntos exclusivamente ligados à música. Fosse de guitarras ou de discos, revelavam-se as melomanias e deixavam-se os anglicismos para outras horas.
Daí para cá, o João deixou de usar publicamente o apelido com que nasceu. Tornou-se conhecido pelo seu primeiro disco, em 2009, “João Só e os Abandonados”. Pouco tempo depois, abandonou os Abandonados e rendeu-se aos encantos da solidão. Em 2011 e 2013 lançou novos discos e teve sucessos de sobejo reconhecimento, como “Sorte Grande” ou “Até ao Fim”. Fui encontrá-lo em Sintra, no dia do concerto de apresentação do novo trabalho. Contente por ter, pela primeira vez, um camarim só para si, é ali que me recebe, hospitaleiro. Recorda, inevitavelmente, aqueles tempos de Universidade Católica. “Não tinha ideia nenhuma que isto ia ser assim”, começa por confessar, acrescentando que “tem sido uma viagem e pêras”.
“Não cheguei a acabar o curso” de Comunicação Social e Cultural, chegou a finalista mas a música roubou-lhe a predisposição para andar de canudo debaixo do braço. Conciliar as guitarras com os jornalismos “tornou-se incomportável. Até poderia ter sido compatível, mas não deu”. Explica lá isso. “Eu só tenho a vida que tenho porque me dedico a isto todos os dias, e não falo apenas de me dedicar a escrever músicas. É mais que isso: gerir o estúdio, onde vou três vezes por semana, nem que seja para limpar o pós às caixas dos amplificadores, estimular a criatividade. Há sempre muita coisa para fazer. Por exemplo, no dia em que o disco novo chegou da fábrica, eu já estava a escrever outro.” Nas palavras do próprio, é uma compulsão alegre e em nada histérica.
É rodeado de música e guitarras que João se sente bem, acompanhado pela sua solidão e pelo universo que tem construído para si próprio. Mas este João já não está Só. Ao seu quarto disco, o rock ficou de lado. Graças ao casamento com Mafalda, a miúda dos olhos deste cantautor, “Até que a Morte Nos Separe” é um registo pejado de baladas que lhe é inteiramente dedicado. O disco nasceu-lhe do instinto. “Antes de casar, montei uma sala de ensaios que, passado um mês, já era estúdio. E é aí que este disco começa. E eu até andava a tentar fazer canções sobre outras coisas, só que naquele bloco de tempo as minhas ideias iam todas para a minha relação com a Mafalda. Portanto decidi assumir isso e fazer o disco sobre o meu casamento. E a música é óptima para se poder celebrar uma coisa tão importante na vida.”
Horas após esta conversa, Mafalda estaria na assistência do Centro Cultural Olga Cadaval, onde se ouviram pela primeira vez ao vivo os temas inéditos. Lá atrás, junto à cabine do técnico de som, discreta. A meio do espectáculo, que foi também a primeira vez do artista em auditório, o músico perguntou por ela e depressa a denunciaram. Agradavelmente surpreso, João acabaria por exclamar: “muito bem Mafalda, já aprendeste alguma coisa comigo. É junto à mesa de som que melhor se ouve um concerto”. Por três vezes, foram-lhe dedicadas canções sem ser preciso dizer muito. “A musa já se sabe quem é”, diria João.
A aptidão para as canções, não sabe de onde veio. Nunca estudou música mas sempre a apreciou com ouvidos atentos. Aos quatro anos já gravava cassetes e três anos depois recebia a sua primeira aparelhagem. Aos cinco, o boletim da escola dizia: “quando for grande quero ser… músico”. Nem o Nostradamus acertaria assim. Depois disso, nasceu esta “doença saudável”. Aos 12, a mãe, que tocava guitarra, ensinou-lhe os primeiros acordes. A infância foi longe de ser normal. “Não me lembro de ter tido brinquedos”, revela, “se tive foi uma coisinha mínima do Dragon Ball. De resto era sempre discos ou cassetes de vídeo com concertos”. Para além dos seus idolatrados Beatles – “cresci tanto com eles que eram meus tios, eu dizia que eram as canções do tio John e do tio Paul” – João ouve hoje Wilco, Eels, White Denim e garante ter ficado deliciado com o novo trabalho dos Blur, “The Magic Whip”. “Tenho muitas referências anglo-saxónicas”, refere, “embora delire com o Jorge Palma e o Sérgio Godinho. Aliás, sempre que oiço Godinho tenho ideias novas para canções. É como me acontece com o Bob Dylan, é tão bom que apetece gamar-lhe aquilo tudo, as letras e as músicas”.
Do futuro, João Só ainda pouco sabe. “Prefiro ir subindo degrau a degrau do que ter um ‘boom’. É óbvio que os ‘booms’ são bons, mas passas aí um ano e meio a partir tudo o que é sala e depois andas a colher os restos”, observa, sem deixar de lado os sonhos que o assolam. “Tenho grandes esperanças de fazer qualquer coisa com o Rui [Veloso], já se falou nisso por alto. E sei que também vou fazer, com o Samuel Úria, a banda sonora para o filme do Nuno Markl [Por Ela].”
Mais para breve está o segundo concerto de apresentação do novo disco, no Porto. Será no próximo dia 14, na Casa da Música, e contará com a participação especial dos Prana.