Já não consegue ouvir uma música sem imaginar... luz. Branca, vermelha, frenética, intensa. Fred Rompante é desenhador de luz e é da luz que parte para descrever o mundo. Como o da música, por exemplo, que situa por cores (luz, portanto). Para ele, "Desfado" de Ana Moura é azul. O álbum homónimo dos bracarenses Peixe:Avião é a preto e branco. O directo "Talvez Foder", de Pedro Abrunhosa, é branco, enquanto que a "estética vintage" de Miguel Araújo só poderia ter tons de "laranja, vermelho, branco corrigido para [o filtro] CTO", uma "coisa mais quentinha".
Este ano, o PÚBLICO inspirou-se no Tempo como tema transversal dos 25 anos do jornal, que hoje, 5 de Março, sai para as bancas com uma edição especial, gratuita, com o físico teórico João Magueijo como director por um dia. Porque em 2015 assinala-se os 100 anos da teoria da relatividade geral de Einstein. Porque 2015 foi proclamado pela Assembleia Geral das Nações Unidas como o Ano Internacional da Luz, uma forma de a celebrar como matéria da ciência e do desenvolvimento tecnológico. E para quem vive da luz, como Fred, qual é a importância de tal apontamento?
Toda. "Basta pensar que se ficasse tudo escuro, de repente, ia ser um bocado complicado", evidencia o desenhador de luz de 37 anos. É, aliás, esse o exercício com que nos confronta José Saramgo em "Ensaio Sobre a Cegueira". E é esta a "razão primitiva" do seu trabalho: fazer "ver o que se está a passar em cima de um palco". Mas não só.
Um desenhador de luz "é a pessoa que tenta materializar em luz o que os artistas pensam". "Nós iluminamos um espectáculo e tentamos ajudar a contar a história. (...) Tentamos potenciar a música, fazer a sua parte visual." O seu trabalho é "metafórico", como vimos no primeiro parágrafo, onde também passamos em revista alguns dos nomes com quem Fred tem trabalhado nos anos que leva de estrada. Há mais: Deolinda, Linda Martini, Anaquim, We Trust, Best Youth, Quest. Para muitos, ao desenho de luz junta os cenários. E há ainda o teatro, ao qual já não está tão dedicado. "O que eu faço é completamente abstracto e trabalhar com um conceito abstracto é fantástico. O único limite é a tua imaginação."
A reforma vem com os Radiohead
Natural de Vila das Aves, Santo Tirso, mas a viver no Porto, Frederico estudou Direito até perceber que "não estava lá a fazer nada". Aproveitou o advento do Porto 2001, período prolífico para trabalho nas áreas técnicas culturais, para experimentar. Entrou no Teatro Nacional São João como técnico de iluminação — lá trabalhou uns 7 anos, até seguir para o Theatro Circo, em Braga, onde foi o coordenador da área até 2012, ano em que se assumiu como "freelancer" e abriu uma empresa: a Side Effects. Ri-se: "No início não percebia nada". Montou projectores, limpou-os, arrumou 1001 cabos. E lá foi percebendo o que queria. Chegou a passar pela ESMAE, pelo curso de Técnico Superior de Luz e Som, mas não conseguiu conciliar os estudos com o trabalho, que até hoje nunca lhe faltou. "Somos poucos [nesta área] cá."
O salto para a música aconteceu com os Deolinda, por volta de 2004. Seguiram-se outras e muitas histórias. Ultimamente, esteve nos concertos da digressão "Inteiro" de Pedro Abrunhosa, inclusive no MEO Arena, um espectáculo mesmo "à americana", com "vídeo, 17 músicos em palco e montes de projectores" — claro que teve um daqueles momentos "Eu ouvia isto em miúdo e agora estou aqui a fazer luzes" com algumas músicas do icónico "Viagens". Por estes dias — e tendo em conta que raramente passa mais de duas semanas seguidas em casa — está em digressão com Ana Moura, com quem já passou por "casas míticas", como a B.B. King Blues, em Nova Iorque, ou a Filarmónica de Luxemburgo, "uma das salas mais fixes do universo". "Tem sido uma experiência muito importante para mim", diz. "Há sempre aquela dose de nervosismo que é boa para nós, mantém-te 'on the edge'."
Já teve Erlend Øye, dos Kings of Convenience, em pleno Theatro Circo a pedir-lhe "Mr. light designer, I'm too white, please less light". Tudo porque, recorda, ele dizia que "os portugueses eram muito morenos". E ele não. Em Goa, no "encore" do concerto dos Deolinda, ficou sem "follow spot", aquele projector que segue os artistas, porque o técnico, indiano, incapaz de falar inglês, não percebeu que o concerto não tinha terminado. Desfia histórias como quem enrola cabos, dizemos nós. Objectivo final? Fazer a luz dos Radiohead. "Se algum dia isso acontecer, considero que posso reformar-me." E, de cada vez que os ouve, rabisca novos desenhos, pensa no que gostava de fazer. Aliás, defeito de profissão: "É muito difícil ouvir um CD sem imaginar luzes."
"A luz é arte"
Portanto, a mente dele é composta, pensamos nós, por holofotes, projectores, lâmpadas, filtros, e um sem número de coisas mais técnicas. E, no final de contas, é possível ter um estilo no desenho de luz? Ver um espectáculo e saber quem o assina visualmente? "Gosto de pensar que sim e que aos poucos as pessoas vão reconhecendo a minha linguagem." Apesar de acompanhar bandas completamente diferentes, com iluminação oposta. "Não costumo fazer muito 'pisca pisca'. Trabalho mais as intensidades e tento seguir as dinâmicas da música. Faço conjugações de cores simples — é muito raro usar três cores." "Sóbria". É a palavra.
O objectivo do Ano Internacional da Luz é, diz a UNESCO, "esclarecer os cidadãos de todo mundo para a importância da luz e das tecnologias ópticas nas suas vidas, no seu futuro e no desenvolvimento da sociedade". Faz sentido?
"No mundo actual", começa Fred, "a luz é arte". "É um bem essencial e é sempre remetido para um papel secundário. Em todos os sectores." Carrega-se no interruptor e faz-se luz, sem perguntas, e poucos pensam no real consumo energético. Da sua parte — e tendo como esposa uma engenheira ambiental — tem feito um esforço para diminuir a pegada ambiental dos espectáculos, investindo cada vez mais em iluminação LED (ouve som à esquerda). E há ainda um outro sentido mais "poético", que deve ser valorizado: "O mundo está todo a precisar de mais luz. De ser mais fraterno, mais luminoso."