O Português da Dona Fernanda

Neste nosso país tão apaixonado pelos poetas que não lê, todos os dias assisto boquiaberto ao trucidar do verbo por gente com idade para ter juízo, e suficiente acesso ao público para ter pudor

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Miguel Madeira

Entre os dramas que tenho connosco, com Portugal, o que mais me massacra o quotidiano, mais amiúde, é a difícil relação que temos com o que nos une: a língua.

Neste nosso país tão apaixonado pelos poetas que não lê, todos os dias assisto boquiaberto ao trucidar do verbo por gente com idade para ter juízo, e suficiente acesso ao público para ter pudor. E não falo só da peregrinação do Acordo Ortográfico, este martelar legislativo com fins economicistas duma entidade viva, ou da inenarrável Assunção, segunda figura do Estado, que tão alegremente “inconsegue” utilizar a língua oficial, elevando-me seriamente o “nível frustracional”.

Também não embirro por princípio com os estrangeirismos anglófonos, afinal a língua imperial é este “globish” a que nos vemos obrigados, e as novidades da realidade criam-nos os neologismos duma maneira mais ou menos provável. Muito menos quando a Academia se “aggiorna” e aceita o "bué" no dicionário, algo que a minha geração (pelo menos em Lisboa) sempre disse sem complexos e que, por mais que venha do quimbundo, já é compreensível até pela minha avó, lá entre a Beira e o Alentejo.

O que na verdade me envenena e me faz vociferar com o monitor são os doutores e engenheiros da nação, pesados de prebendas e auto-satisfação, a triturar o idioma com neologismos inábeis e desnecessários. Quando e quem decidiu que intervir, operar, experimentar e viver não chegavam e tínhamos de começar a “intervencionar”, a “operacionalizar”, a “experienciar” e a “vivenciar”? Quem é que convenceu os economistas e gestores deste país que se nos falassem de “impulsionamentos consensualizados e focalizados”, em vez de impulsos consensuais e focados, nós nos convencíamos que a Economia não é uma ciência social e tomaríamos os “impactar” “alavancar” e “elencar” por linguagem positiva e não pelo português da treta, pretensioso e pseudo-científico que é? Será que precisamos mesmo que a ”emotividade” substitua a emoção, a “condicionalidade” a condição e a “graciosidade” a graça?

Só o fanado conceito de “inverdade”: esta (mui nacional) maneira de dizer que alguém mentiu sem proferir a palavra mentira, que sozinha justificava uma tese em Linguística, faz-me ferver o sangue e ouvir o chocalhar dos ossos do Torga em São Martinho da Anta e do Aquilino no Panteão.

No país onde ninguém se cansa ou coíbe de citar essa tão descontextualizada e incompreendida frase de Bernardo Soares: “Minha pátria é a língua portuguesa” (aparentemente ninguém leu o resto do parágrafo), poucos parecem dispostos a respeitá-la, quanto mais a tratá-la com amor. Mas é desse amor que vos peço: estadistas da CPLP, gramáticos do Português, em vez de se entreterem a tentar legislar um organismo vivo com acordos abortivos, financiem e construam um dicionário que una lexicalmente o Português de Portugal com o Português do Brasil e de África.

Para memória futura e para que a minha filha saiba o que é uma "maka" em Angola ou um terno no Brasil, que eu vou continuar a escrever no Português da Dona Fernanda, a minha querida professora da Primária que, com os meus pais e o Eugénio e o Gedeão e a Sophia e o Antero e o Drummond de Andrade e o Pepetela e o Mia (e tantos outros), fez do Português o meu meio, pessoal e transmissível, de me extrair ao silêncio.

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