Tenho uma certa tendência para me rodear de pessoas que, há meia dúzia de dias, mais não eram que puros estranhos. Recentemente, uma catadupa de felicíssimos acasos têm-me levado a ser próximo de gente a quem não pararia para dizer um olá se com ela me cruzasse há dez semanas. E agora, eis-me aqui, num sítio novo, numa mesa nova, a comungar de uma refeição com pessoas que já estimo e mais estimarei em breve.
Poderia continuar com esta torrente de descrições vagas, mas o que aqui mais importa é esta assumpção na qual tendemos a descartar seres humanos como nós por serem “estranhos” ou “conhecidos” ou mesmo “amigos”. Aos “amigos”, entregamos-lhes as valências de terem as maiores qualidades do planeta, apenas por se darem connosco. “Ai o meu amigo é o melhor do mundo porque acredita profundamente que deve passar a maioria do seu tempo com um humano extraordinário como eu”, parecemos dizer, numa auto-legitimação da nossa própria existência. Em simultâneo, os “estranhos” pouco nos importam, e por isso falamos deles de forma vaga e pejorativa, com frases como “as pessoas são burras” ou “os portugueses são calões”. Como não os conhecemos, não lhes sabemos qualidades e, como tal, julgamos que pouco direito têm a respirar o mesmíssimo ar que nós.
Mas não.
Os estranhos mostram, não raras vezes, ser bem mais apetecíveis que aqueles que já conhecemos. São caixas de Pandora que nos ajudam a perceber que o nosso mundinho não é assim tão perfeito, tão ideal, tão imaculado. Não. As vidas dos outros podem muito bem ser melhores que as nossas e, num arrumo e num aprumo de características, podemos beber das melhores fontes sem catalogações bacocas. Conviver com gente que não nos era familiar há umas horas abre-nos janelas de brisas refrescantes que nunca antes nos haviam banhado os rostos.
De outro ponto de vista: não serão os amigos uns estranhos com quem descobrimos ser melhor gente? Não são os familiares capazes de nos causar surpresas maiores que aqueles com quem nunca nos cruzámos, causando explosões de amor ou amarguras piores que o fel?
Precisamos de aprender isto, em conjunto: todos somos estranhos ao mesmo tempo que todos somos família. As pessoas são feitas da mesma matéria cósmica, já o dizia o Carl Sagan. As pessoas são gente feita de camadas, como as cebolas, só que mais ricas em nutrientes. As pessoas não são "bibelots" de pechisbeque. Talvez por não nos termos dado ainda conta deste singular facto tenhamos esta tendência de observar as imperfeições dos umbigos em vez de procurar arranjar os buracos das estradas ou encontrar mezinhas que provoquem sorrisos aos vizinhos.