Comédia a preto e branco

É triste continuar a ver gente no meu país a não querer seguir a máxima “punch up, not down” – não bater em quem já é alvo de preconceito e tem pouca representação, mas sim nos opressores

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Paul Townsend/Flickr

Há uns meses, passei pelo Rossio e vi os quatro membros do Gato Fedorento, de caras pintadas de castanho, a gravar um novo anúncio de Natal do Meo. Uma semana depois, o anúncio começou a ir para o ar. Não sei qual era a ideia, nem sequer se estavam a imitar pessoas negras ou ciganas. Seja o que for, pareceu-me errado. Pouco depois, apareceu outro anúncio, com os cómicos indiscutivelmente caracterizados como negros. Ambos são aleatórios: não consigo perceber que sentido aquilo faz.

 

É que, mesmo que não tenhamos o historial dos americanos no que toca a estas questões, não deixa de ser "blackface", algo que rebaixa e desumaniza pessoas cuja única diferença é terem outro tom de pele. Quer se queira, quer não, está a fazer-se parecer que a cor é hilariante, e é raro isso não vir associado a um sotaque que tenta fazer as pessoas parecerem menos inteligentes. Ainda para mais, num país como Portugal, onde não há muitas pessoas não-brancas em lugares de poder, na televisão ou no mundo do entretenimento.

 


Atenção: isto não é um ataque aos cómicos. Acho que eles têm piada, e acima de tudo, são pessoas inteligentes e bem-intencionadas, o que faz falta na comédia nacional. E não duvido de que não queriam ser racistas, só que não pensaram nisso. É por isso que custa. Nem é uma estreia: quer na SIC Radical, na SIC generalista ou na RTP, há vários exemplos de Ricardo Aráujo Pereira e companhia em "blackface". E não é como se fossem os únicos. A lista inclui pessoas de que gosto e respeito, outras nem por isso: Herman José, Nicolau Breyner, Pedro Fernandes, Francisco Nicholson, António Raminhos, Luís Filipe Borges, Luís Franco-Bastos, Eduardo Madeira, Manuel Marques, Joaquim Monchique, Maria Rueff, Nuno Lopes, Carlos Afonso, César Mourão, Nilton, Marina Mota, Manuel Machado, Bruno Ferreira, Manuel João Vieira...e concorrentes do "A Tua Cara não me é Estranha": Luciana Abreu, João Paulo Rodrigues, Toy, F.F. ou Mico da Câmara Pereira (isto parece-me particularmente ofensivo).

 

Para alguém como eu, que acredita no poder e na importância do humor para lutar contra o que está errado e tornar a vida menos má, é triste continuar a ver gente no meu país a não querer seguir a máxima “punch up, not down” – não bater em quem já é alvo de preconceito e tem pouca representação, mas sim nos opressores.

 

Não estou a chamar a ninguém racista, muito menos dizer que haja a intenção de magoar alguém. Mas intenções e resultados são coisas diferentes. É preciso que se perceba e reconheça isso, e que haja vontade de mudar e aprender. Porque ninguém nasce ensinado. O problema é quando insistem em não pensar no que estão a fazer de errado, ou se recusam a ouvir. Acredito que muita gente que faz isto adore o John Oliver, mas não siga algumas lições dadas pelo programa dele, em que já se perguntou como é que "blackface" ainda existe. A culpa é de todos nós, que não falamos disto o suficiente (e, por favor, "whiteface" e racismo ao contrário não são problemas).

 

Também não me estou a tentar sobrepor a vozes que podem falar disto com mais propriedade, de alguém que sofra mesmo na pele com isto e a quem a nossa sociedade raramente dá espaço para dizer como se sente. Como pessoa branca, apenas me cabe reconhecer o meu privilégio, dizer para ouvirmos pessoas a quem isto diz realmente respeito e nunca falar por cima delas.

 

Em 2013, o "New York Post" noticou que havia gente indignada porque, na versão grega do "A Tua Cara Não Me É Estranha", tinham usado "blackface" para fazer de Stevie Wonder. Ora, em Portugal isso aconteceu todas as semanas, e as únicas polémicas foram se o Toy teria ou não fumado marijuana a fazer de Bob Marley ou se o Manuel Luís Goucha estava ou não a ser racista quando assumiu que um casal negro eram os pais de um concorrente negro. Deviam ser outras.

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