Leis de jogo e interpretações

IRB e Rugby Europe têm muitas vezes leituras diferentes das regras para a mesma situação

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Num dos últimos programas televisivos Total Rugby que vi, dois dos melhores árbitros mundiais, Owen e Joubert, apareceram a explicar os resultados da conferência internacional de árbitros em que tinham participado. No final, para uma reunião que, julgo, teria como objectivo estabelecer equilíbrios e coerências nas diversas interpretações, fiquei com a sensação que, um e outro, voltavam para casa com visões diferentes. E a menos de um ano do Mundial a falta de uniformidade não garante nada de bom.

Com 22 Leis de Jogo - e nem todas elas suficientemente claras e independentes da interpretação das altas esferas, o râguebi não é fácil de arbitrar, deixando muitas vezes em espectadores - e também em jogadores e treinadores - enormes dúvidas sobre o acerto da decisão, nomeadamente no jogo no chão e nas formações ordenadas. Tratando-se de um jogo colectivo de combate não se pode esperar que os jogadores não lutem pela conquista de terreno e da bola e, se cada árbitro tiver o seu critério, ninguém se entende.

Há uma regra fundamental a cumprir nos jogos desportivos: são as equipas e os seus jogadores que devem fazer o resultado, não o árbitro! Infelizmente o râguebi não tem dado ao princípio o devido valor. Ou porque, como denunciou Kaplan (um dos árbitros mais internacionais, agora retirado), os árbitros inventam interpretações - um péssimo exemplo da invenção foi a exigência da voz para a introdução da bola na formação ordenada bem como a invenção do placador assistente do qual não se encontra definição em lado algum - ou ainda porque as associações regionais internacionais criam as suas próprias interpretações que impõem aos seus árbitros.

E o resultado não é o melhor: os treinadores ficam sem saber que indicações devem seguir nos seus treinos e os jogadores não sabem como devem agir para não serem penalizados.

Há dias e quase em simultâneo em Portugal e em Inglaterra dois n.º 8 numa formação ordenada que avançava prenderam a bola com os pés e, saltando, levaram-na a ultrapassar a linha de ensaio para fazerem o toque de meta. Polémica num e noutro país. Feitas as devidas perguntas a quem de direito - IRB e Rugby Europe - duas respostas diferentes. Da IRB: ensaio válido e com uso de uma técnica que consideraram muito interessante. Da Rugby Europe: falta, a bola não pode ser presa com os pés. Cada um com a sua e embora nas Leis do Jogo se refira apenas (alínea b) da Lei 20.9) que a bola, na formação ordenada, não pode ser segura pelas pernas, é minha interpretação - para além da inestética dos saltos de canguru - que seja qual fôr a situação, a bola só pode ser presa com as mãos e nunca com os pés que apenas a podem conduzir ou chutar. Mas isto, a minha opinião, é apenas um pormenor, na necessidade que seja definida uma norma comum a todos os intervenientes no jogo. E que, quando houver alterações elas sejam imediatamente conhecidas por todos sem divisões de importância.

O jogo é complexo e difícil de dominar na sua totalidade para além da clara noção que toda a gente tem que a bola não pode ser passada para a frente. As Leis do Jogo, a forma como estão escritas e a forma como se considera a possibilidade de novas interpretações a que treinadores e jogadores internacionalmente menos qualificados quase só têm acesso quando são confrontados com elas em campo, desclassifica o jogo. E nem a propaganda sobre o vídeo-árbitro que começou, pesem embora os diversos avisos, a estender-se a um ponto tal que os realizadores de televisão já se sentem autorizados a impôr a sua visão do jogo, serve para cobrir as enormes dificuldades que se estão a criar para uma compreensão global que possa ultrapassar o domínio cultural inicial do jogo. O livro das Leis de Jogo não parece ser o mesmo para todos e até o treinador dos All Blacks, Steve Hansen, já o disse publicamente: o livro das leis deveria ser rasgado e reescrito numa linguagem que todos possam entender. No entanto são as Leis do Jogo que fazem a linguagem comum para que gente diferente possa entender-se no mesmo jogo - o que define a vital importância de não haver interpretações diversas.

Quando frequentei, recentemente, o Curso de Sevens da IRB realizado em Lisboa percebi, pela explicação sobre a aplicação das Leis do Jogo dada pelo árbitro internacional Paulo Duarte - ainda recentemente arbitrou a final de uma das etapas do Campeonato da Europa de Sevens - que a arbitragem e a interpretação das situações depende do organizador responsável do torneio ou campeonato - IRB ou organismos internacionais regionais. Foram dados diversos exemplos de diferentes interpretações para a mesma situação - e nós, referiu, temos que apitar como eles exigem. Claro! E é se querem continuar uma carreira internacional... E o problema é este: os mesmos jogadores têm que ter atenções diferentes se estão a jogar o Campeonato da Europa ou o World Rugby Series da IRB e o entendimento sobre a mesma situação pode ir, como se analisou, até esta diferença: não é falta ou aqui é assim, falta e cartão amarelo! O que, no mínimo, representa uma falta de respeito pelos actores principais, por aqueles que fazem verdadeiramente o jogo: os jogadores.

Tentar globalizar o jogo, tentar que às dez/doze melhores equipas mundiais se juntem com igual capacidade competitiva as outras oito/seis que uma recente classificação, juntando os países que anteriormente constituíam o Tiers 1 e 2, considera o escalão de alto rendimento da IRB, não terá êxito sem que as Leis do Jogo possam ser identicamente interpretadas e utilizadas. Com a cega estratégia de marketing colocada acima de tudo o resto, tenho dúvidas que haja atenção devida para que o desenvolvimento possa vir a ser globalmente equilibrado.

No fundo, prejudicados são sempre os pequenotes: as grandes equipas têm possibilidades de ter ficheiros completos sobre as características ou manias de cada árbitro que vão apanhando no grande circo internacional e têm a possibilidade de treinar as adaptações necessárias; as equipas - como Portugal - apanham árbitros de que pouco ou nada sabem e passam metade da 1ª parte a tentar adaptar-se com os prejuízos, quer para o jogo, quer para o resultado, daí decorrentes. E é mais fácil do que parece resolver o problema, basta que haja liderança.

Resta-nos a esperança que, à mudança do nome - de IRB para World Rugby - corresponda uma mudança de atitude.

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