Despimo-nos para mostrar que “não passamos de números”
Luís Coelho fotografa as pessoas como a sociedade as deixou: desumanizadas. O projecto "Não passamos de números" tem instalações no Porto, mas quer retratar pessoas em todo o país. No final do próximo ano será uma exposição e um livro — para gritar contra a precariedade
Ficou desempregado em 2006, quando Rui Rio pôs nas mãos de La Féria o Teatro Rivoli, no Porto, e nunca mais voltou a encontrar um emprego fixo e justamente remunerado. Agora, já sem direito a subsídio de desemprego, Davide Costa, 52 anos, sobrevive sem qualquer ajuda do Estado. Dora Fonseca ficará na mesma situação no início do próximo ano, quando a sua bolsa de doutoramento terminar e perder a sua única fonte de rendimento. Como qualquer bolseiro, não terá direito a subsídio de desemprego, apesar de durante quatro anos ter estado vinculada a uma instituição com um contrato de exclusividade. Davide e Dora são duas das 14 pessoas já fotografadas por Luís Coelho para um projecto a que chamou “Não passamos de números” e que quer demonstrar uma realidade que afecta cada vez mais gente: “A precariedade já chegou a mais de metade da população e afecta todas as gerações e pessoas com todo o género de formação.”
Luís Coelho quis fotografá-los como a sociedade os deixou — “totalmente desumanizados”. Por isso, “de uma forma muito fria e objectiva”, optou por “um ambiente quase hospitalar, muito ‘clean’ e muito branco” onde as pessoas aparecem nuas, só com uma placa à frente. “Estamos a ser tratados como números, por isso decidi levar essa ideia do número ao extremo, contrapondo-a com as competências das pessoas retratadas, que podem ser recauchutadas e reutilizadas e quando não servem para nada são deitadas fora. É isso que está a acontecer na sociedade contemporânea”, disse ao P3 o fotógrafo de 34 anos.
Um dos retratados é o próprio Luís Coelho, formado em Design de Equipamento e Arquitectura. A dada altura, quando o trabalho na área da construção começou a escassear, o passatempo chamado fotografia passou para primeiro plano. Investiu num curso profissional no Instituto Português de Fotografia e é essa a sua actividade principal actualmente. Um trabalho seguro? Nem por isso, responde: “Estamos sempre a contar os tostões. Sei que para a semana vou estar a fotografar bijutaria, mas na seguinte já não sei. Vai dando para sobreviver.”
Trabalhar no McDonald’s
O projecto “Não passamos de números” é um “work in progress” que Luís espera continuar por pelo menos mais um ano. Para já fotografou 14 pessoas no Grande Porto (espreita a galeria), mas procura voluntários para fazerem parte do projecto e quer deslocar-se a várias cidades: “Para já fiz no Porto, mas quero ir a Lisboa, Coimbra, Braga, Guimarães...”. O trabalho pode ser acompanhado no Facebook do projecto, mas estará também em formato instalação espalhado por todas as cidades onde for passando: “A arte deve levantar questões e a instalação na rua é uma provocação, levar as pessoas a questionar o que se passa. Se conseguir que as pessoas pensem um pouco naquilo já é uma vitória.”
Foi por isso que Dora Fonseca aceitou participar: “Indubitavelmente já toda gente pensa no assunto, mas nem todas se identificam, um bocado por estigma, por continuarem a ter perspectivas para lá da sua posição social concreta”, comenta a psicóloga prestes a terminar um doutoramento, na área da Sociologia, que estudou as relações entre movimentos como os Precários Inflexíveis, FERVE e outros com os sindicatos. Quando a bolsa de doutoramento da FCT terminar, a jovem de 34 anos tentará um pós-doutoramento — mas a esperança de que seja bem sucedida é ténue: “É cada vez mais difícil em Portugal, com a ruptura da FCT e a canalização da investigação científica para áreas mais produtivas e lucrativas, como engenharias e físicas.” Opções? “Se não conseguir provavelmente vou trabalhar no McDonald’s, o que me causa calafrios, ou noutra coisa qualquer. Mas a perspectiva mais certa será emigrar, talvez para o Brasil”, responde.
O designer de luz Davide Costa carrega a mesma dificuldade de encontrar emprego em Portugal, mas com uma agravante: “Há dez anos não sentia o factor idade, havia trabalho para todos, neste momento devido à precarização e exploração da mão de obra do trabalho, troca-se uma pessoa de 50 anos por duas de 25”, lamenta. Quando teve conhecimento do projecto de Luís Coelho “Não passamos de números”, aceitou participar de imediato: “É preciso de todas as formas desmascarar e chamar a atenção das pessoas para esta realidade.”
O ex-trabalhador do Rivoli pondera agora requerer o Rendimento Social de Inserção (RSI) — mas o valor deste subsídio, lastima, “nem dá para pagar a casa ao banco”. “Para que serve se não contempla o mínimo das necessidades? É por isto que somos números: porque a lei não contempla o lado humano, não interessa se as pessoas vivem bem ou mal, se contribuíram durante anos com o seu trabalho e os seus impostos para o desenvolvimento de um país que neste momento está como está, penalizando quem trabalhou e beneficiando os mercados, a banca, já para não falar da corrupção.”
O “Não passamos de números” será mostrado numa exposição, no final do próximo ano, depois de já ter passado por várias cidades, e deverá ainda dar origem a um livro, que além das fotografias de Luís Coelho terá textos de jovens escritores. Até lá, promete não deixar cair a precariedade no esquecimento e combater o discurso da “inevitabilidade” de certas medidas políticas: “É um discurso antigo que já cheira a mofo e que nem sequer é inovador, foi a Margaret Thatcher que disse pela primeira vez. É o grande lema dos neo-liberais”, aponta Luís.
“A inevitabilidade é uma construção, é perfeitamente ideológico e um substracto que permite aplicar o que quer que seja, naturalizando essa necessidade”, concorda Dora Fonseca, que aponta exemplos do que se passou na América Latina dos anos 80: “Em 2001 a Argentina foi ao charco completamente, bateu-se o pé e não se pagou dívida nenhuma, bateu-se o pé e começou-se a nacionalizar coisas, a gerir as coisas de outra forma e a combater a dependência horrorosa que havia dos Estados Unidos. Se calhar era pegar nesses exemplos e torná-los mais conhecidos.” E Luís Coelho remata: “Em democracia há sempre alternativas, dizer que não há é uma nova ditadura.”