Estar apaixonado é…

Estar apaixonado é um regresso à infância. É ver nascer uma novidade que nos pode trazer uma infinitude de possibilidades ao marasmo das vidas que tínhamos

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Serge Saint/FLICKR

Parece haver uma certa tendência contemporânea de escape às emoções. Vivemos dias em que só importam os números, os objectivos, os ganha-pães. Os sentimentos, esses, são empurrados para o canto da sala. Depois, quando nos certificamos de que mais ninguém nos está a ver, autorizamo-nos, com conta, peso e medida, a descarregar emoções — as boas e as más — sobre quem nos é próximo ou transferimo-las para um animal de estimação. E depois, estranhamente ou não, o Chagas Freitas é top de vendas por ser um quase-sucedâneo do Gallo ou do Oliveira da Serra.

Estar apaixonado é um regresso à infância. É ver nascer uma novidade que nos pode trazer uma infinitude de possibilidades ao marasmo das vidas que tínhamos. Apaixonarmo-nos possui um cunho de experiência religiosa. Uma coisa tipo “antes da Ana” e “depois da Ana”. “A minha vida antes da Ana andava no lixo, era tudo uma seca, não via cores em lado nenhum. E depois a pirralha aparece-me à frente e está feito o desatino: com ela por perto, tudo faz sentido, é como se me tivessem oferecido a Pedra de Roseta e agora o mundo já não é lugar assim tão indecifrável”, conta-nos alguém de olhar inebriado.

Não é, portanto, de espantar que os apaixonados sejam profundamente irritantes. Tornam-se invencíveis, crêem cegamente na maravilha que lhes foi acontecer. Não têm receio de se tornar ridículos por fazerem vozinhas parolas ou criar um dialecto próprio. A eles, só lhes importa verdadeiramente a opinião da cara-metade. E, senhores, quem os pode censurar?

Esta profunda crença no amor coloca de parte os racionalismos do quotidiano. Esquecemos para sempre os erros do ontem para colocar uma esperança inefável no amanhã. Esta pessoa aparece e damos por nós a conferir toda a autoridade ao Billy Corgan por ter escrito a “Ava Adore”. Damos por nós a acreditar com uma profunda convicção que também nós poderemos ser um Saramago e uma Pilar, um Miguel Esteves Cardoso e uma Maria João. E mesmo quando já se têm dez ou vinte anos de casalismo no CV, a coisa ainda tem o potencial todo para se manter. Tal como acontece com aqueles que idolatramos nas artes do companheirismo.

E depois a fé aumenta-se-nos através dos actos corriqueiros. Não são apenas as mensagens que inundam os telefones ou as paixões que se vão cumprindo entre os lençóis ou noutros lugares mais afoitos. Há tanta coisa que as palavras não dizem. Os toques, os cheiros, os olhares. Tudo se torna familiar. Tornamo-nos irracionais. Seja quando julgamos (erradamente) vislumbrar, ao longe, o alvo da nossa paixão ou quando um transeunte traz o mesmo perfume dela. Deixamo-nos abalar, agarramos no telefone e tentamos tocar naquele ser único só mais uma vez. Antes da próxima. E da seguinte.

Estar apaixonado é, sobretudo, crença. No futuro, no sucesso, no potencial que duas pessoas podem ter em ser ainda mais que a simples soma de ambas as partes. É estar a jogar à sueca e descobrir que, mesmo sem ter muitos trunfos, tem de se fazer o maior número possível de vazas com a mão que nos calhou. Condicionalismos hão-de existir sempre, mas a primazia deve ser dada às coisas simples, irresistíveis e irracionais. Não há volta a dar. E, para isso, reordenam-se vidas em prol de algo maior.

Mas estar apaixonado também é dor. A dor da expectativa e da possível desilusão, a dor da não-correspondência e até a dor de causar nos amigos uma intolerância por nos termos tornado insuportáveis aos ouvidos de quem se ainda dá ao trabalho de nos escutar. As dores das dúvidas, das interrogações, até das discussões clivadas. E a pior de todas: a dor do medo da verdade.

Se calhar o Chagas Freitas é que a sabe toda. Não dá para falar de amor sem azeite à mistura.

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