Sento-me entre os dois maduros à luz da lua, fumo eu que eles agora são saudáveis, partilhamos os gins cheios de truques que estão na moda. Como bons tugas empurramos a digestão com histórias de petiscos antigos, comentamos o tempo farrusco ao som dum jazz muito velho.
A conversa cai para a política (como sempre), meço-os para ver até onde posso soltar a língua (reflexo de antropólogo): brancos duma África que já não há, esquerdalhos, desempoeirados e vivaços: estou em casa... mas o pudor continua a dizer-me para ouvir em vez de falar. Eles os dois fazem o pleno em três minutos: a Palestina, a Síria, a Ucrânia, as desgraçadas levadas pelos Boko Haram, os fascistas em França, os tarados daqui e dali; o ébola, as misérias da África que se afoga no Mediterrâneo ou que estiola em Lampedusa, o último tiroteio ianque. Caiem nos tormentos da paróquia: o recuo da justiça e da saúde, a indigência forçada e planeada da escola, o “fait divers” dos “meets”, os venenos intestinos dos Antónios do PS, o Marinho Pinto, a possibilidade remota de alguém ser engaiolado pelo cambalacho do BES. Mais um bocadinho e tinham ido às listas de pedófilos da iluminada da Justiça e aos buxos da Praça do Império, valha-nos alguma coisa.
Olham para mim à espera que eu diga alguma coisa, eu passo, brinco com o gelo do copo, com a cabeça brilhante do cigarro no cinzeiro demasiado largo e baixo para ser útil numa varanda virada ao vento. Eles continuam a malhar o ferro e a escorregar para a filosofia política, a desfiar a desilusão acumulada duma geração que acreditou que ia mudar o mundo antes dos trinta; plangem o analfabetismo funcional, a falta de voluntarismo, a corrupção tentacular, a infâmia vaidosa e desavergonhada.
Eu vejo-me obrigado a abrir a boca: atiro do alto do meu cinismo geracional pedrinhas para caldear o mecanismo pessimista que vapora à minha frente. Como bom cientista social cago taxas de analfabetismo dos anos 70 e discorro sobre a lentidão da História sem convencer ninguém, eles brincam com o gelo do gin enquanto resmungam “pois... é capaz de ser isso”.
Ser de esquerda é duro, o camarada Voltaire dizia qualquer coisa como “nada dói mais do que ser vencido por inimigos medíocres” e é dizer pouco. Ter razão “historicamente”, como todo o progressista radical eventualmente sempre tem: como tinham os “jacques” medievais, os jacobinos de 1789, os constitucionais de 1820, os abolicionistas de 1860, os “rouges” de 1871, os republicanos de 1910, os “vermelhos” do tempo do Botas, serve de pouco a cada uma das gerações de esquerdistas que se sente a puxar o mundo para um horizonte sempre fugidio.
Mas é o que temos, o tempo longo e a certeza que o “reaça” a cada pequena batalha ganha perde a guerra do tempo que passa. Eu e os dois da varanda, como o tio Zé Mário, também queríamos “ser felizes agora, porra”, mas aprendemos a saborear um amanhã que vai ser um pedacito mais justo e radioso, e é por isso que continuamos a mover o nosso grão de areia, um de cada vez, até a montanha se mexer.