"O que é o futuro?". Este é o ponto de partida da curta-metragem mais votada pelo público nas Curtas de Vila do Conde. "O filme joga um bocadinho com dois tempos: o presente e o futuro. Mas afinal o que é isso do futuro? Eu hoje já estou no futuro — o futuro de quando tinha 18 anos", explicou ao P3 David Doutel, que realizou "Fuligem" (Bando à Parte) com Vasco Sá.
O filme dos portuenses foi vencedor do prémio de Melhor Realização e prémio de curta mais votada pelo público, na 22ª edição do concurso, depois de a dupla ter cosido à mão "O Sapateiro".
Vasco contou que este novo trabalho aborda o percurso que os comboios fizeram em Portugal e o quanto contribuiram para o país. "Tiveram uma importância muito grande para povoar certos sítios, deram-nos a conhecer lugares que seriam impossíveis de conhecermos se não passássemos por lá. A cultura do betão tirou-nos esses locais e agora nós vamos vê-los e são carcaças com pessoas lá dentro, sítios que estão completamente despovoados. Portanto a mensagem do filme é: tem de haver uma acção!", acrescenta.
Vasco e David demonstram ter uma grande consciência social. Desta vez preocuparam-se em levantar a questão do encerramento das linhas ferroviárias. A curta parte de algo global. "Uma coisa que não é da vida particular mas sim de uma vida colectiva", sublinha David. Os transportes públicos têm esse lado colectivo, envolvem muita gente e não uma pessoa só.
David justifica que ambos gostam de "reduzir as narrativas a uma só pessoa". E "Fuligem" é a história de um homem que "tem um percurso grande". O filme acaba por, "em 14 minutos, percorrer quase 27 anos da história do personagem". Tem um lado "memória" e recupera coisas que estão para trás na vida dos personagens.
Assentar a fuligem
"É um bocado engraçado o trajecto deste filme. Acabámos o filme três dias antes de ser exibido, então isto é tudo bastante intenso: acabar o filme, estreá-lo e ser premiado. É um acumular de emoções gigantescas. Eu acho que nós ainda estamos a digerir um bocadinho isto tudo. Acho que falta tempo para assentar a fuligem", recorda David.
Fuligem "é um objecto", explica. "Não será um objecto muito palpável porque é o resultado de uma combustão, portanto acaba por ser pensado assim em carvão desfeito, em pó, é uma espécie de fumo negro. Nós chegámos a isto também porque nos interessa a plasticidade desse material mas também porque isto representa aquilo que fica. O "Fuligem" tem um bocado esse lado. Mesmo hoje quando nós vamos à estação de São Bento somos capazes ainda, de nos túneis de São Bento, encontrar fuligem nas paredes. É o que ficou dos comboios a vapor. E fuligem é isso, é o que fica para trás", sugere David.
Para os realizadores, a técnica utilizada nos filmes deve ir sempre de encontro à história do próprio. Em "Fuligem" utilizaram desenho à mão e desenho digital, porque são retratados dois tempos, um mais antigo em que não existiam sequer computadores e o tempo actual em que existe "esta modernidade e esta instantaneidade do acontecimento das coisas".
Esta existência de um presente e de um passado levaram os realiizadores a optar pela utilização, além do lápis e do papel, das mesas gráficas digitalizadoras que "permitem acelerar um bocadinho o processo".
Para esta curta foi necessário um ano de produção. Mas um ano que, segundo David, é "muito pouco". "Nós acabámos por fazer este filme num tempo que sabemos perfeitamente que é curto para aquilo que o filme exige de sanidade mental. Mais do que o número de desenhos é o número de horas que não dormimos", explica o realizador, acrescentando que o resultado da curta só é possível devido à extrema dedicação que têm pelo trabalho. "Nós gostamos de facto disto".