O tédio de uma surpresa esperada

A incógnita tem os mesmos perigos do tédio. Não há magia constante nem surpresa permanente. Quando pintares em cima do pintado, deixas de ver a magia do diferente, do único

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Clarissa Carvalheiro/Reuters

Não deve haver nada mais entediante do que o absolutamente previsível. Pior do que o totalmente parado é o ritmo certo, repetido, esperado. Pior do que o lago gelado são as marés sempre iguais: a subir e a descer num ritmo que já sabemos, que já conhecemos. Não será por isso que esmorecem tantos amores, que se descoloram tantas paixões? Não será assim que caem tantas relações, como a tinta que desbota antes de descolar, porque está sempre ali, sempre igual. Porque não muda, não se reinventa, não se pinta?

— O que acabas de escrever é totalmente óbvio. Qual é o teu ponto, se é que há algum?

— Há sempre algum.

— Só conta quando me acrescenta algo, quando não é mais do mesmo.

— Se fosse mais do mesmo, não era o absolutamente previsível, o totalmente entediante?

— Não de ti. De ti o tédio era uma surpresa. Não és entediante, és uma incógnita.

— A incógnita tem os mesmos perigos do tédio. Não há magia constante nem surpresa permanente. Quando pintares em cima do pintado, deixas de ver a magia do diferente, do único.

— A surpresa cansa?

— A surpresa interminável é mais perigosa que o equilíbrio permanente, porque o remédio para ela é ele mesmo, o próprio equilíbrio. É o mar de calma que costumamos achar exagerado, que tendemos a pensar que destrói, que corrói. Que termina, que extermina. É ele a salvação para o absurdo que é esse caos forçado pela procura de fugir às rotinas que nos perturbam os dias.

— Discordo. Tudo acaba por ser perigoso e entediante nesse teu mundo de tédio absoluto e surpresa constante?

— Há sempre caminhos, não podem é estar construídos. A surpresa precisa de espaço para viver. A adrenalina precisa de equilíbrio para aparecer. A novidade precisa de um sempre igual para nascer.

— O prazer de uma tempestade depois de semanas de bonança.

— De uma tempestade repentina, imprevisível, como o ímpeto de uma torrente fluindo rapidamente, para depois parar, quando menos se espera. Quando menos se espera.

— Como é que se constrói uma relação de equilíbrios duráveis e surpresas não ritmadas, não esperadas? De ritmos espaçados e momentos imprevisíveis?

— “Não há mais do que cinco notas musicais, mas combinadas produzem as melodias mais maravilhosas; não há mais do que cinco cores básicas, porém, as suas combinações produzem as cores mais esplendorosas; não há mais do que cinco sabores cardeais, mas quando misturados, produzem os gostos mais deliciosos.”

— As combinações imprevisíveis, claro.

— Como as voltas da canalha.

— Como é que se faz uma relação assim, cheia de sabores improvisados que temperam com cores inventadas a pincelada decidida do para sempre?

— Começa quando te ouvires perguntar: “Eu deixo-te ser tu, amor?”

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