O capitalismo atirou-os colina abaixo, do Bairro Alto até ao Intendente, em Lisboa, mas não lhes fez esmorecer o fervor revolucionário. Em instalações mais exíguas do que aquelas em que funcionaram durante pouco mais de um ano, os Precários Inflexíveis que ajudaram a fundar a associação MOB juntam-se agora ao Colectivo pelo Direito à Habitação e à Cidade (Habita) para retomarem um projecto que mantém as suas vertentes artísticas e culturais mas que agora se tornou sobretudo político.
É sábado à noite. No 12 F da Rua dos Anjos a vozinha afiada da cantora no palco já não reclama pelo direito ao trabalho, como se fazia há quatro décadas. Clama pelo direito à preguiça, num sistema laboral engordado à custa de recibos verdes e estagiários permanentes. A ironia é uma arma, e a sala vermelha fica ao rubro quando a dupla de cantores de intervenção Pedro e Diana ataca um faduncho dedicado ao discurso oficial sobre o aumento da natalidade. A vozinha “naif” de Diana não dá descanso aos inimigos: “Façam filhos mais depressa, que isto continuar não pode/Ninguém pare e tudo fode”.
Que o digam os “habitués do andar” de cima. Apesar de toda a movida dinamizada pela mudança da Câmara de Lisboa, há hábitos que ainda fazem com que o bairro do Intendente se mantenha fiel às suas tradições. “Lá em cima há uma pensão”, explica uma das mentoras do MOB, Ana Feijão, satisfeita com a mudança. “A renda no Bairro Alto tornou-se insuportável e foi uma sorte encontrarmos alguma coisa nesta rua. Darmo-nos com pessoas que vêm de realidades muito diferentes abre-nos os olhos. Este sítio tem muita gente desempregada e com vidas difíceis — umas mais do que outras”.
O pior são mesmo as obras na rua, que só deixaram transitável um apertado passeio onde apenas a custo se cruzam duas pessoas. Do lado de lá da escalavrada estrada fica um antigo cinema convertido há mais de uma década em sapataria e edifício de escritórios. E se no Roxy há muito que já não passam fitas, a verdade é que o cinema voltou ao Intendente, também pelo punho do MOB. Os finais de tarde de domingo são para ver — ou rever — obras de autor, nalguns casos com a presença do realizador.
Além das “soirées” musicais dos sábados e das matinés de domingo ainda há programação variada na Rua dos Anjos ao longo da semana: debates, como não podia deixar de ser, assembleias, exposições mas também sessões de esclarecimento de dúvidas, uma vez que aqui funciona a sede dos Precários Inflexíveis, associação de defesa dos direitos dos trabalhadores precários. E até preparação física, sob a forma de aulas que também podem ser de teatro. Ou jogos de tabuleiro. “São pretextos para as pessoas se juntarem à volta de uma mesa”, explica Ana Feijão. Uma vez por mês haverá actividades para os mais novos.
Quem entra no 12 F não vai ao engano: no enorme mural pintado por José Smith Vargas defronte da zona do bar um homem prepara-se para apedrejar os polícias que o perseguem, enquanto, por cima dele, anónimos trabalhadores dos “call centers” desfiam mais uma jornada, antecedida de intermináveis engarrafamentos para chegar ao trabalho ou de prolongadas viagens em transportes públicos hipervigiados. “Eles é que vivem acima das nossas possibilidades”, grita um dos cartazes afixados na parede. No novo espaço cruzam-se gentes que se conhecem de muitas lutas.
Enquanto não abre a livraria que já existia na Travessa da Queimada, com montra para a rua e tudo, o MOB — um nome que remete para a mobilização activista — vende a preços acessíveis, a partir dos dois euros, numa banca improvisada ao lado do bar, obras sobre Marx e o operariado, mas também de Jack London. O escaparate inclui a mais recente edição do jornal Mapa, de inspiração anarquista.
Para participar nas actividades do espaço é preciso pagar uma quota anual de membro de três euros — bem à medida das posses de todos a quantos nada sobra para contar no final do mês. A descida da colina não quebrou os ossos ao MOB, que promete continuar a animar a malta. E a resistir, sempre.