A qualquer lugar onde vá, procuro sempre visitar o cemitério local. Não sou gótico (ou qualquer sucedâneo seu) e não me fascina a morbidez de um sítio que tanta inspiração oferece a filmes de terror. Simplesmente, gosto de olhar os rostos que fizeram o "zeitgeist" de ontem, assim como nós, os vivos, fazemos o de hoje. Os cemitérios são — e deviam sê-lo ainda mais — lugares de culto. São museus de memórias não relatadas. Se celebramos os ilustres do passado, por que não celebrar também os anónimos?
Em “Anatomies” (há pouco tempo traduzido para português pela Temas e Debates), Hugh Aldersey-Williams conta, de uma perspectiva cultural, as histórias que compõem o corpo humano, membro a membro, de peculiaridade em peculiaridade. Ao ler cada capítulo, compreendemos que transportamos um cadáver, uma máquina que nos pode falhar a qualquer hora. Há não menos tempo, o PÚBLICO reforçou a ideia, mostrando uma reportagem formidável sobre o destino dos cadáveres estar na mão de quem os carrega enquanto ainda estão vivos. A falha nos corpos pode ser mediana e, assim, resolúvel ou, de forma mais gravosa para a consciência que habita o corpo, implacável. E quando a falha é grave, vamo-nos às malvas. Finamo-nos, batemos a bota, ficamos frios, vamo-nos desta para melhor. Morremos.
A morte é assustadora porque pouco conhecemos dela. E por isso temos medo e por isso ainda menos queremos conhecê-la. Não sabemos onde fica, não sabemos para onde se vai ou sequer se se vai para algum lado, não sabemos se dói, não sabemos nada. Porque quando morremos, já não estamos e, como tal, não se fala, não se conta, não se diz. Morrer é como abrir a porta de um quarto escuro, sem ter a mínima noção se vamos tropeçar, escorregar, cair ou se nos vão indicar uma mesa agradável onde passaremos uma eternidade a tomar chá com o Cliff Burton ou o JFK. O que ainda é pior na ideia da morte é que temos plena consciência de correr o risco de nunca mais regressar. Nunca mais veremos os que amamos, os que odiamos e aqueles que têm um papel “mais ou menos” nos nossos dias. Também não sabemos se encontraremos os que já partiram. A solidão, aqui como lá, apavora.
Outro dos grandes medos é o de haver a provável hipótese de não haver nada. Tal como existia um Nada antes de nascermos, também um Nada de proporções cósmicas poderá existir. A ciência, aqui, pouco ajuda. Por isso, temos crenças e acreditar ou não é com cada um. Os ateus munem-se de uma presunção errada, segundo a qual a ausência de provas é a prova em si mesma. Dado o vácuo científico sobre o assunto, não há umas opiniões melhores que outras. Há crenças. Acredito que sim, acredito que não. Ponto final. Apesar de tudo, a morte não se vive. Mortos, já desligámos. Como tal, não devíamos temê-la. Da mesma forma que não se teme o coice de um unicórnio ou uma chapada de barbatana de sereia.
É, ainda assim, mais que natural que se tenha medo de morrer. Porque não temos conhecimento de que haja outra oportunidade de viver que não seja esta. A solução, se alguma houver, é aproveitar tudo como deve ser. Viver bem, com a dose de disparates quanto bastem. Pode não ser grande coisa, mas o meu objectivo primordial é o de, um dia, achar o leito de morte e pensar de consciência limpa e tranquila que nada ficou por fazer. Encontra também o teu.