Esta é a história da testemunha que não viu o acidente. Que quando chegou ao local já tudo havia acontecido. Viam-se alguns vidros no chão. Gente ainda emocionada. Mas nem feridos, nem colisões. Reconheço: nasci dias depois da revolução que mudou o país.
Tal como eu, está cerca de meio Portugal. Ouvimos relatos. Vimos imagens. Sentimos mudanças. Mas de abril não guardamos um só cravo. Um só som. Somos os filhos da revolução. Aqueles que mais beneficiaram com a revolta e os que tantas vezes desvalorizam o que se conquistou.
É certo que temos memórias dos anos 70. Do início dos 80. De haver fome. De muita gente pedir na rua. De não se viver folgado como mais tarde a entrada na Europa permitiu. Memórias de um país desestruturado. Com maus serviços. Más estradas. Má formação. Um país precariamente rural, com níveis de inovação assustadoramente reduzidos.
Tal como eu, muitos portuguesas não respondem à pergunta de abril. Não estiveram. Não existiam. Mas sabemos do valor desta conquista. Não duvidamos do salto qualitativo e quantitativo que o país conseguiu dar a todos os níveis. Na educação. Na saúde. Na justiça. Entramos por mérito próprio na CEE. Ajudamos a construir o sonho europeu.
Organizamos a Expo e o Euro. Vencemos prémios internacionais na literatura, no desporto, na arquitetura, no cinema, na medicina. Ajudamos a libertar Timor. Fomos várias vezes Capital da Cultura. Estamos na elite dos países com maior índice de competitividade em turismo. E relativamente bem posicionados nos que melhor preservam a liberdade de imprensa.
Sim, sabemos. Em 40 anos tivemos por três vezes que receber ajuda do FMI, embora duas delas nos primeiros 10 anos de democracia. Sabemos também que existem problemas estruturais por resolver. Que a justiça ainda é lenta. Que o Estado continua pesado. Que algumas assimetrias se mantêm. Que o desemprego está em níveis preocupantes. Que muitos continuam a sair do país por falta de oportunidades.
Mas olhemos para o mundo e para a Europa. Para os problemas sociais dos Estados Unidos, para a fortíssima corrupção no Brasil, para as tenções gravíssimas entre a Ucrânia e a Rússia. Olhemos para as Coreias. Para a Venezuela. Para os refugiados do mundo inteiro. Olhemos para o problema dos imigrantes na Europa central. Olhemos para o sufoco da Grécia. Vale a pena continuar a olhar?
É inquestionável o valor da democracia. E mais ainda o que Portugal conseguiu fazer com ela. Este é um caminho que não termina e que exige capacidade e persistência. Que exige responsabilidade. A todos. E é o compromisso que meio Portugal – no qual me incluo – deve assumir. Cumprir o sonho de abril, mantendo acesa essa luz. Se não ajudámos a fazê-lo – por não termos tido a possibilidade de escolha –, podemos escolher agora e ajudar a preservá-lo. Porque escolhendo abril, escolhemos Portugal.