“Tenho a sorte de fazer tudo aquilo de que gosto”
“Não desistir” e ter “espírito de sacrifício” são os valores que João Correia - que abandona neste sábado a selecção nacional -, gostava de deixar como exemplo para os mais novos
É médico ortopedista no Hospital de Santa Maria, mas também tem o curso de Higiene Oral, da Faculdade de Medicina Dentária. Duas áreas da medicina tão diferentes porquê?
O curso de Higiene Oral foi uma escolha um pouco por falta de opção. Quando terminei o ensino secundário candidatei-me à Faculdade de Medicina e não consegui entrar. Fiquei um ano a fazer melhoria de notas, mas no ano a seguir não consegui entrar novamente. Na perspectiva de ficar de fora, depois do concurso de Setembro, inscrevi-me no curso de Higiene Oral, na Faculdade de Medicina Dentária, onde tinha uma colega. Decidi arriscar para não ficar um ano parado e se, depois do fim do curso ainda tivesse disponibilidade para estudar, entraria em Medicina. E foi isso que aconteceu.
A Medicina sempre foi um sonho desde criança?
Desde criança que disse sempre querer ser médico. Os meus pais sempre me disseram que nunca falei noutra profissão senão médico. A Ortopedia veio um pouco pelo facto de praticar desporto e de estar muito ligada a lesões desportivas. Entrei com 30 anos para Ortopedia, depois de ter acabado o curso de Medicina, aos 29. Mas ainda estou nesta especialidade, falta-me este ano e mais outro para terminar.
Pensa vir a tirar mais algum curso, mais tarde?
Não, já chega (risos). A medicina é um curso que envolve muito estudo e exige muito de nós.
De que forma se organiza para dar 100% em tudo o que preenche a sua vida?
Não há uma pílula secreta. É um pouco de sacrifício. Tenho a sorte de ser uma pessoa que não precisa de dormir muito. Durmo muito pouco e aproveito o pouco tempo que tenho. Durante o curso de Medicina trabalhei em Higiene Oral e a minha rotina era: estudar, trabalhar, treinar, correr, e por aí…
Quantas horas dorme, em média, por dia?
Em média cinco horas, com sorte (risos). Por exemplo, hoje saí do hospital às 5h, porque tivemos a operar um doente até essa hora. E voltei a acordar às 7h40. De manhã estive em consultas e à hora de almoço fui para o ginásio.
O que sente quando está em campo? E no hospital, em serviço?
É inexplicável [o que sinto em campo]. É fazer aquilo de que se gosta mesmo, do fundo do coração. É uma sensação inexplicável, estar ali em campo com os nossos companheiros, a lutar por um objectivo comum. Lutar pelo nosso país. É indescritível. Às vezes saio do hospital disparado, para ir treinar, cansado, mas quando chego ao jogo sinto que vale tudo muito a pena. Todo o sacrifício se transforma em alegria. Eu tenho a sorte de fazer tudo aquilo de que eu gosto. Sempre quis ser médico, mas a adrenalina está sempre mais alta quando estamos a operar. Adoro a minha profissão e também me dedico a 100%.
Ao longo da carreira sacrificou muito a vida pessoal e profissional por causa do râguebi?
Ultimamente tem sido complicado. Tenho duas filhas e custa-me muito estar quatro dias longe delas ou em digressões, deixando-as sozinhas com a minha mulher. É complicado porque são pequenas. Mas não me arrependo de nada.
O apoio da família foi decisivo para conseguir jogar râguebi ao mais alto nível durante tantos anos...
O apoio da família é fundamental. Sei que a frase é cliché, mas a verdade é que “por detrás de um grande homem está uma grande mulher” e a minha esposa, namorada de longa data, sempre teve um papel fundamental na minha carreira desportiva e profissional. Apoia-me em tudo e sacrifica-se muito para que eu consiga atingir os meus sonhos. É fundamental o apoio da família, dos amigos e de todos aqueles que gostam de nós. Sem eles seria quase impossível fazermos o que quer que seja.
Que exemplo gostava de deixar aos mais novos, que estão agora a começar?
Não gosto de me dar como exemplo, porque acho que as pessoas são todas diferentes e têm capacidades diferentes. Mas hoje em dia há espaço para tudo. Pode-se apostar no desporto sem descurar a parte dos estudos. Digo para os jovens se aplicarem e nunca deixarem de estudar. Não desistir, espírito de sacrifício, são tudo valores que, ao longo de toda a minha carreira como jogador de râguebi, me foram incutidos pelos meus colegas. Se tiver de passar um legado, que seja este.