Se em Cascais a evolução é "abissal", falta ao "Oh Gui" ser nacional

Para dirigentes desportivos, técnicos sociais e familiares de atletas, o projecto já deu provas dos seus benefícios. A aposta é agora no alargamento do programa a outras instituições

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Oxana Ianin

Os efeitos da terapia proporcionada pelo projecto de râguebi adaptado "Oh Gui", não se limitam aos da prática efectiva durante os treinos, em que participam cerca de 20 atletas com deficiência do CRID e da CERCICA. É certo que, dentro das quatro linhas, reforçou-se o espírito de equipa, alargou-se o domínio do próprio corpo nos jogadores que antes não sabiam correr ou coordenar certos movimentos e atenuaram-se até fobias como a que ataca alguns atletas quando começa a chover e eles se assustam com a origem desconhecida das gotas de água.

Mas é fora do campo que a coordenadora do "Oh Gui", uma iniciativa do Cascais Rugby, constata as melhorias mais significativas. Fazendo notar que, pela sua condição clínica, os cidadãos com deficiência "são habitualmente muito focados em si próprios", Ana Rita Vasconcelos aponta como exemplo maior da evolução operada pelo projecto o crescente grau de solidariedade demonstrado pelos jogadores: "Aquele que sabe apertar os seus atacadores passou a apertar os atacadores de quem não sabe. Aquele que sabe apertar os botões da roupa também começou a ajudar quem não consegue. Isto pode parecer pouco, mas a realidade é que, antes, essa entreajuda não existia. Hoje, é uma diferença abissal".

Júlio Marques, que coordena o "Oh Gui" no CRID, admite que os familiares dos atletas inscritos se mostraram algo receosos há quatro anos, no arranque do programa. "Mas o balanço é extremamente positivo, não só pela forma como está estruturado o projecto, mas também pela disciplina que incutiu nos participantes, pela preocupação que eles desenvolveram pelas suas coisas e pela atenção que passaram a dedicar ao colega do lado, na equipa, no balneário ou cá fora", garante.

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Esse progresso poderia alcançar-se com recurso a outros métodos, "mas o râguebi teve um benefício directo, muito mais rápido do que aquele que se conseguiria através de outras actividades". Os jogadores ganharam à-vontade, passaram a estimar o equipamento desportivo como nunca fizeram com as suas próprias roupas e, no geral, apuraram um sentido de responsabilidade que resulta de se saberem observados por terceiros. "Eles sabem que os treinos envolvem colaboradores externos ao CRID e passaram a encarar as coisas com mais rigor", explica Júlio Marques. "Como jogam com colegas da CERCICA, isso também mexe com a sua auto-estima, porque não querem ficar atrás".

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Essa maior confiança também é reconhecida por Ana Flores, que tutela o projecto na CERCICA e afirma que os atletas da casa evidenciam agora um maior empenho nas outras acções em que se envolvem. "Aqui na instituição nunca faziam abdominais, por exemplo, mas nos treinos é como se não houvesse amanhã!", assegura. "Eles gostam de estar com grupos de outras instituições e as capacidades que desenvolvem no treino, bem trabalhadas, têm influência no seu quotidiano. Como o râguebi valoriza todos e a função de cada um, o jogo dá-lhes a sensação de que são válidos".

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Dessa auto-estima resulta também uma maior auto-consciência. "Temos miúdos e jovens que rodavam muito sobre si próprios, o que é um gesto corporal associado à deficiência", explica Ana Flores. "Agora já perceberam que isso é desagradável e diminuíram esse movimento, tanto no jogo como noutras situações da sua vida".

Carlos Correia comprovou a abrangência da mudança no seu próprio neto, o Diogo, que tem 19 anos, sofre de paralisia cerebral motivada por problemas respiratórios à nascença e integra a equipa de râguebi adaptado do CRID. O jovem sempre gostou de actividades físicas, já andou na natação e até chegou a experimentar o surf, mas o avô revela que foi com a bola oval que "ele ganhou confiança, por ter tido tempo para conhecer as pessoas, para se integrar bem e para criar uma rotina". Hoje, nota-o mais responsável: "Nunca se esquece das quintas-feiras, está sempre a dizer à avó para pôr tudo na mochila, fica todo entusiasmado com os treinos, está mais sociável".

É por esse ânimo geral que Carlos Correia gostava de ver o "Oh Gui" alargado a outras instituições. "Isto funciona e é uma garantia de que estas pessoas podem fazer desporto de uma forma que se ajusta a qualquer idade e a diferentes doenças ", esclarece.

Ana Rita Vasconcelos segue a mesma linha de pensamento e, depois da realização de um primeiro torneio "Oh Gui" em 2013, no qual só se defrontaram atletas do CRID e da CERCICA, a sua ambição é replicar o projecto em instituições de outras localidades. "A ideia é que, um dia destes, o râguebi adaptado possa ter um torneio nacional com 10 ou 20 equipas", confessa.

Com quatro anos de experiência e “know-how”, o mais difícil já foi feito. Agora é tempo de "passar o exemplo e ajudar à evolução dos outros".

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