Aos abraços da Catarina

A Catarina tem 26 anos e um mundo de sonhos pela frente. O cabelo acima dos ombros e aquela certeza nos olhos tornam-na numa das meninas mais bonitas que já vi. A Catarina também tem Síndrome de Down mas isso diz-se numa frase

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Faso Productions, Inc./Flickr

A Catarina tem o cabelo acima dos ombros e os olhos carregados de vida. Enfrenta o mundo com a doçura e a determinação de quem quer muito ir para lá dos poros da felicidade. Isto é tão raro, sobretudo na era dos descrentes no sorriso, que folgo em saber que aquele olhar quer dizer que o mundo é um berlinde para o tamanho dos sonhos que ela carrega.

Passei uma tarde com ela e — uma mão de horas depois de nos conhecermos — a Catarina assaltava-me o pescoço com a certeza de que nunca mais havíamos de deixar de dar abraços. É tão rara — também — esta entrega que percebi que, quando falamos de empatia, sobretudo entre pessoas que se separam por dois míseros anos de idade, não há abraço roubado que nos faça estranhar.

A dança — ou a forma mais física da felicidade a querer romper para lá dos poros — é uma paixão que a Catarina desenha com raridade. Tem ritmo, uma noção gigante do tempo na música e vê-se sozinha — com ela e com o corpo dela — naquele isolamento gostoso que só toca aqueles que se entregam ao que realmente gostam de fazer.

Quando conheci a Catarina, ela confessou-me baixinho — à medida que eu guardava a sorte de me sentir confidente — que estava apaixonada e que tinha um sonho muito grande: casar e ter filhos. Hoje, aquele príncipe deixou de ser o cavaleiro dela mas não duvido que o sonho continue lá. A julgar pela determinação nos olhos dela, ali não se apagam sonhos com uma borracha.

Um dia, fui vê-la interpretar uma personagem no musical “Jesus Cristo Superstar”, no cinema São Jorge. Não coube em mim de orgulho no talento para o teatro e na forma como se deixou, outra vez, dançar em cima de um palco, desinibida de pequenos, médios ou grandes públicos.

A natação, o teatro e a dança enchem-lhe o coração de prazer mas ainda tem a vontade dos pouco acomodados: não consegue estar parada. Levanta-se, disponível, para tudo o que se permite fazer.

No dia em que em conheci a Catarina, na despedida, ela voltou a assaltar-me o pescoço. Nunca me pareceu tão sentido o abraço de uma — até ali — desconhecida. A julgar por aquele aperto, não havia ali senão muito amor para dar. O príncipe dela há-de ser um sortudo por poder assaltado no pescoço todos os dias da vida deles.

A Catarina tem 26 anos e um mundo de sonhos pela frente. O cabelo acima dos ombros e aquela certeza nos olhos tornam-na numa das meninas mais bonitas que já vi. A Catarina também tem Síndrome de Down mas isso diz-se numa frase. A frase tem doze palavras e não tenho ideia do que possa vir a acrescentar de muito substancial ao que já vos contei sobre ela. A frase já acabou, já veio outra a seguir e acho que perceberam que a Trissomia 21 é apenas mais uma das características da Catarina. O resto das características — ou aquilo que se chama de carácter — diz-se em muitos parágrafos e numa data de frases. O resto não se contabiliza em palavras.

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