Olhar a natureza na era da técnica

Coreografia de Mette Ingevartsen em Serralves: reflexão do que pode ser a dança, mas também para que saibamos re-parar, abrir espaço e fôlego para uma natureza (existir)

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Esquecemo-nos de aprender olhando a terra. A Natureza, enquanto matéria vital em si mesma, e a consciência de que vida inorgânica e orgânica partilham uma mesma energia, são acepções ainda remotas na generalidade dos discursos, mesmo nos ambientais e ecológicos. Tais premissas foram basilares para o ciclo de artes performativas Matérias Vitais, em Serralves, que encerrou com a peça "evaporated landscapes", da coreógrafa e bailarina dinamarquesa Mette Ingevartsen.

Com este mote, a artista realizou uma série de projectos de naturezas artificiais ("evaporated landscapes", 2009; "The Extra Sensorial Garden", 2010; "The Light Forest", 2010; e "The Artificial Nature Project", 2012). "Evaporated landscapes" respondeu a duas preocupações: como pensar a dança sem os corpos humanos em palco, substituindo-os pela coreografia de elementos naturais? A uma pequena plateia colocada sobre o palco, a coreógrafa propôs uma instalação visual e sonora que simula acontecimentos naturais (degelo, fluxo da água, explosão de lava, crepitar do fogo).

Na escuridão, o cenário é composto por pequenos montes de espuma, iluminados pelo interior com uns "leds" brancos e intermitentes. Um "performer" em palco activa máquinas de produzir ilusões, que manipulam elementos como o gelo seco, o vapor, ou bolas de sabão, acompanhados por um minimal desenho de luz e sonoplastia. De uma dessas máquinas jorra uma massa que, sendo gelo seco, se assemelha a vapor de água, inunda o palco na oscilação do movimento da água, e transporta o público para memórias contemplativas de naturezas líquidas.

Outras imagens seguem-se: duas máquinas em palco disparam uma infinidade de pequenas bolas de sabão, cujos reflexos sob uma iluminação vermelha nos remetem para vulcões, acompanhadas pelo som metálico que lembra o crepitar do fogo. Surgem imagens que simulam o degelo dos pequenos "icebergs" de espuma em palco e, terminando como começa, desta peça fica-nos a ideia de uma natureza cíclica que perdura, indiferente à nossa passagem.

Instalações ambientais

Pensar nas naturezas artificiais de Mette Ingevartsen remete-nos para as instalações ambientais do artista dinamarquês Olafur Eliasson que, fazendo também uso de matérias naturais (luz, vento, calor, musgo, lava sólida e, em especial, a água nos seus diversos estados), insere o visitante em experiências espaciais e multi-sensoriais (de que são exemplo "The mediated motion", ou "The weather project").

Segundo Eliasson, a obra de arte e o museu têm essa potencialidade de desafiar o modo como interagimos com o nosso entorno, provocando o público com experiências estéticas que fomentam a auto-reflexão sobre a nossa percepção e envolvimento crítico (nas suas palavras, “seeing yourself seeing”), processos estes que formam subjectividades e, nesse sentido, têm implicações éticas, sociais e políticas.

Embora haja afinidades em "evaporated landscapes", o público de dança ainda permanece imóvel e em silêncio na relação plateia-espaço cénico, o que reduz, em certa medida, o envolvimento de que fala Eliasson a uma experiência contemplativa. Mette Ingevartsen expande o campo de experimentação da dança ao coreografar matérias não humanas, mas não a liberta das suas convenções de recepção. Apesar desta fragilidade, reconhece-se a pertinência do seu gesto, não só para a reflexão do que pode ser a dança, mas também para que saibamos re-parar, abrir espaço e fôlego para uma natureza (existir).

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