Não há como fugir e se dissesse o contrário estaria a mentir e a armar-me em valente: foi duro. Foi duro desde o início, umas semanas antes, quando vi que não iria conseguir preparar-me minimamente, não que eu o faça habitualmente, mas não era uma corrida qualquer, seriam 42 quilómetros. 42 quilómetros nos quais faltam relatos de pessoas que desistem, pessoas que se sentem mal, pessoas que se lesionam, pessoas que estão bem preparadas, algumas das quais que fazem disto vida.
Nunca havia tempo para treinar, as corridas feitas tinham uns tempos miseráveis, a alimentação não era a desejada para estar no top no dia seis, as horas de sono foram sempre negligenciadas, na semana antes mais ainda.
Andava preocupada que fosse fazer aquilo "de cabeça" — como costumo fazer tudo —, mas que isso tivesse implicações irreversíveis. Pensei em não ir por várias vezes. Pensei em ir e " de certeza que vou desistir aos 15 km". Pensei em não ir "porque não quero desistir a meio pois não é algo de que goste".
Além das pessoas que inevitavelmente sabiam (apenas duas), a mais ninguém disse. À família fui dizendo que teria uma corrida dia seis (mais uma pensavam eles). Cerca de duas semanas antes fui sendo mais específica, tive uma abordagem bipolar, ora gostava de falar sobre "a corrida", ora tentava mudar de assunto. Mas, interiormente, fui procurando apoio, motivação, precisava do arrepio, tive-o, tenho-o.
O dia vinha-se aproximando, cinco dias antes iniciei uma nova etapa a nível profissional, a minha cabeça andava em todo o lado menos na corrida. No dia cinco é que tomei consciência do que iria fazer, aí, uma vez mais, procurei o apoio, obtive-o, a palavra "obrigada" não chega, quem eu precisava estava lá.
No dia 6 madruguei, a "carga cinegética" a crescer, começar a manha a rir foi especial, a dizer disparate, a descontrair. O percurso para a corrida iniciou-se, a companhia descontraída foi vital, o incentivo continuou, uma maneira diferente.
A corrida começa, chiça, "ainda nem 10 km fizemos e parece que já fiz os Pirineus para cima e para baixo", Algés marca a metade do percurso, "raios, ainda falta metade", Cais do Sodré parecia que estava no jogo de computador e alguém com o cursor a eliminar "bonequinhos", corredores a parar, a abrandar, a desistir, tentei não olhar e continuar, estava no km 30. "Já não falta tudo", penso, "como terá sido a meia maratona", "de certeza que foi essa que fez", "depois quando tiver o telefone ligo logo para saber". Fui correndo e viajando nos pensamentos, ajudou, Santa Apolónia, quero água, a dada altura a agua parecia insuficiente, era a cada três quilómetros mas para mim parecia o dobro, "calma, agora não vais baixar os braços", reduzi um pedacinho a passada, km 36, "só faltam oito", ainda faltavam oito!
Objectivo: manter o passo de corrida, curva para a esquerda para virar para o Parque das Nações, rotunda, já não sabia a quantas andava, estava a correr em modo automático, estava sem noção espacial ou temporal.
Uma camisola vermelha aparece-me ao lado, km 39, olho, não percebi, olho de novo, surpresa total, de repente foi como se estivesse a correr no paredão num qualquer fim de tarde de Verão, em passada lenta e à conversa e a rir, um arrepio enorme cá dentro, uma gratidão, um constatar: km 42. Consegui, terminei, não acredito, estou bem, normal, só queria o gelado, era o mínino que podia fazer, toma, é um Magnum.
Arrepiante, não é para quem quer, é para quem tem a felicidade de o sentir.