Interromper os estudos, juntar dinheiro e voltar a estudar
Com pais desempregados ou a receber o salário mínimo, há estudantes no ensino superior que, por dificuldades financeiras e falta de apoios, ponderam interromper os estudos para trabalhar e angariar fundos para só depois os prosseguir
Bastaram quatro entrevistas aleatórias a estudantes do Departamento de Ciências de Computadores da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) para que a agência Lusa se deparasse com três casos distintos de urgência crassa de apoios sociais para terminar um curso superior.
A compra de materiais para diversas cadeiras, propinas, alimentação, alojamento e transporte são as causas invariáveis da necessidade de concorrer a bolsas de estudo e outros apoios, enquanto revelam uma carência que ultrapassa o âmbito académico e contamina o campo das necessidades básicas de vida.
Com pais desempregados ou a receber o salário mínimo, há estudantes no ensino superior que, por dificuldades financeiras e falta de apoios, ponderam interromper os estudos para trabalhar e angariar fundos para só depois os prosseguir.
Para o caloiro de Ciências de Computadores João Miguel Pontes, as dúvidas e dificuldades em concorrer a uma bolsa de estudo decorreram, sobretudo, da condição peculiar de possuir, simultaneamente ou em função do entendimento de quem processa as candidaturas, um agregado familiar ora “demasiado grande” ora composto por si só.
Natural de Vila do Conde, João Miguel Pontes usa o metro diariamente para ir às aulas no Porto, mas como cresceu acompanhado pela instituição de acção social Casa da Criança, naquela cidade, os obstáculos que defrontou na candidatura à bolsa de estudo “passavam mais por documentos pessoais e a nível de família”, dado que o agregado familiar, “como estava no colégio, era bastante grande”.
João Miguel Pontes está à espera de uma resposta dos serviços sociais da FCUP quanto ao deferimento da sua candidatura a uma bolsa de estudo, que lhe permitirá fazer face às “dificuldades a nível de transporte e [da compra] de materiais”, enquanto lamenta a morosidade do processo em que amigos seus “que já estão no curso há mais tempo, receberam a resposta em Janeiro”. “Acho que até lá consigo aguentar-me. Como no secundário consegui ganhar dinheiro através de bolsas de mérito, uso esse dinheiro para me safar, por assim dizer, mas também a Santa Casa da Misericórdia me ajuda quando é preciso”, explica.
"Tirar de uns sítios para pôr noutros"
A caminho de mais uma aula do 3º ano de Engenharia, Catarina e Cristiana disseram à Lusa que ambas recorreram à acção social para prosseguir os estudos, encontrando-se também à espera de uma resposta dos serviços académicos. “O meu pai está desempregado já há dois anos, a minha mãe ganha o salário mínimo e, portanto, preciso”, sintetiza Catarina, considerando que “não foi fácil” proceder à candidatura. “Até vir a resposta, vamos tirando de uns sítios para pôr noutros e... não sei bem... tem de ser com ajudas”, concluiu.
A aluna de terceiro ano pretende também “tirar mestrado, que ainda é mais caro”, pelo que supõe que terá que “parar um ano para trabalhar e angariar dinheiro e depois logo se vê”. Já para a colega de turma, Cristiana, pedir bolsa para este ano lectivo, algo que faz pela segunda vez durante o curso, “não foi assim tão difícil”, porque já tinha “as coisas prontas desde o primeiro ano.”
Vinda de Viseu e com uma irmã gémea também a estudar no Porto, Cristiana também vai “tentando tirar de um lado para pôr no outro”, enquanto questiona os critérios de atribuição das bolsas de estudo. “No primeiro ano, se não me engano, recebi quase dois mil euros de apoio, mas a minha irmã gémea recebeu mil, por isso não sei quais são os critérios”, disse, partindo do princípio de que passarão pelo facto de uma irmã estudar num politécnico e outra numa universidade pública. “Só as propinas são mil euros, por isso é preciso um esforço dos pais para pagar casa, contas, transportes... não é fácil, temos de fazer um esforço”, garantiu, resignada.
Os estudantes foram abordados pela Lusa no dia em que o presidente da Federação Académica do Porto (FAP), Ruben Alves, considerou injusto o regulamento de atribuição de bolsas a estudantes universitários, defendendo uma revisão do documento para que inclua “mais estudantes” e evite o abandono escolar.