É a casa de chegada, contudo o cansaço é esquecido, a curiosidade vence a hesitação e poucos terão sido os que não deixaram um azulejo pintado para ir ao forno. Na sala da Escola de Artes e Ofícios de Ovar, última etapa da viagem pela “Rua do Azulejo”, os improvisados pintores chegam-se às mesas, as chacotas são distribuídas, os frascos de tinta (azul e amarela) e o papel vegetal dispostos. As regras foram partilhadas durante o passeio, mas, pelo sim, pelo não, recuperam-se: não tocar no azulejo (se não fica marcado); começar a pintar da cor mais clara (neste caso, o amarelo) para a mais escura (o azul); seguir as indicações das estampilhas (duas, como o número de cores a utilizar) para as colocar na posição correcta. Misturar bem a tinta e escorrer o pincel.
O grupo da Universidade Sénior de Vila das Aves vai replicar a técnica de decoração de azulejos que mais viu no passeio temático de hora e meia por Ovar, a estampilhagem. É uma técnica semi-industrial muito utilizada para pintar azulejos de fachada, os mesmo que alteraram o cenário local entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX. As fachadas azulejadas de Ovar impressionaram tanto o primeiro director do Museu Nacional do Azulejo, Rafael Salinas Calado, que este a proclamou “cidade-museu vivo do azulejo”.
“Ovar conserva um grande número de revestimentos azulejares de fachada, que se articulam com outro tipo de ornamentação cerâmica, como pinhas e balaústres…”, descreve a investigadora Maria Rosário Carvalho. “Arriscaria dizer que é o conjunto mais bem preservado em Portugal e é por isso um testemunho de enorme importância.” É claro que Ovar não tem mais azulejos do que Lisboa, Porto ou Aveiro, por exemplo, mas tem uma quantidade e uma diversidade azulejar que a concentração e a escala da própria cidade potenciam — e, então, cada rua é como uma sala de museu.
Os sacos plásticos amarelos podem não ser o mais prático para caminhadas, ainda que urbanas; contudo, como ir a Ovar sem provar (e levar) o pão-de-ló? E assim cá estamos na casa de partida para a “Rua do Azulejo”, o Largo da Casa do Povo, sacos na mão, pão-de-ló de boca-em-boca — e azulejos olhos dentro.
Alguns historiadores acreditam que a odisseia dos azulejos em Ovar está ligada à emigração para o Brasil na transição entre os séculos XIX e XX. De volta a casa, os emigrantes queriam afirmar a sua riqueza e o uso do azulejo como elemento decorativo das fachadas cumpria bem esse papel — estava na moda e era ostensivo. Não só isso como ainda tinha vantagens práticas de resistência e de durabilidade no revestimento de fachadas, o que a cinco quilómetros do mar não é uma questão de somenos.
Tanto assim é que o azulejo em Ovar se encontra em fachadas burguesas, eruditas, mas também vernaculares, apenas porta, janela e azulejo. E podem distinguir-se diferentes períodos só pelo olhar, como aprendemos: os mais antigos, de meados de oitocentos, são normalmente os azuis ou azuis-amarelos, pintados “à mão livre”; no final do século XIX crescem para 15 centímetros e ganham mais cores; já no século XX, a Arte Nova e a Art Déco imiscui-se com cores fortes e elementos vegetalistas e florais. Mais complicado seria memorizarmos os padrões e guarnições — a sua diversidade é também um caso de estudo.
O grupo divide-se após a apresentação geral, para tornar mais ágil a visita. Não saímos do largo sem confrontar duas fachadas, uma pré-industrial, azul e branca, e outra industrial com decoração nas platibandas — o que chama mais atenção a um olhar leigo é o estado de conservação: esta última, a Casa de S. Lourenço, está decrépita, enquanto o primeiro, onde funciona a Foto Lisboa (sucessor do Photo Amador, o primeiro estúdio fotográfico de Ovar), resplandece. Um já foi intervencionado e o outro não.
Aqui, fazemos rewind: se Ovar tem hoje o projecto de itinerários temáticos “Rua do Azulejo” é porque antes houve, e há, um Atelier de Conservação e Restauro de Azulejo (ACRA). É o único atelier municipal do país e está ao serviço do concelho — literalmente, na recuperação de fachadas históricas (azulejos do século XIX e primeira metade de XX) — que agora tem uma área de requalificação prioritária — o centro da cidade, no eixo formado pela Praça da República, o Largo Mouzinho de Albuquerque e o Largo Família Soares Pinto.
Os azulejos são restaurados ou reproduzidos e colocados nas fachadas de forma gratuita; há ainda benefícios financeiros para os proprietários que decidam recuperar os imóveis, dos quais foi proibida a remoção de azulejos. E incentivos para manter todo o estilo da fachada, portas, janelas e ferro forjado incluídos, não apenas a cerâmica: uma fachada Arte Nova (uma das poucas integralmente neste estilo) é apontada “como exemplo do que deve ser feito”.
E, então a exploração: uma fachada de azulejos pombalinos, normalmente usados no interior, que, datada de 1823, será um dos primeiros exemplares de revestimento azulejar de fachada em Ovar; um dos raros edifícios com azulejaria relevada (século XIX) e um outro com decoração em estampagem — juntamente com a estampilhagem são as três técnicas de decoração que encontramos neste passeio. Já vimos uma fachada-publicitária, das primeiras semi-industriais em Ovar e que está agora a necessitar de muitas obras para recuperar os azulejos que imitam porcelana, conhecemos o padrão crochet e andámos de cabeça no ar a olhar as balaustradas de cerâmica vidrada que decoram as fachadas mais opulentas.
Na capela de Santo António, numa extremidade da Praça da República (antiga do Comércio: estamos na margem da rua que foi durante muitos anos a única estrada a ligar Porto e Aveiro) detemo-nos nos azulejos de encomenda com representações ligadas à igreja (cruz, cálice e coroa de espinhos) e na antiga Quinta de S. Tomé, agora a Conservatória do Registo Predial, vemos as únicas telhas (calões) decoradas. No Chafariz Neptuno, vista para o Tribunal de Ovar, obra modernista de Januário Godinho: na galeria externa seis enormes painéis de azulejos de Jorge Barradas parecem tapeçarias com temas ligados ao mar, apropriados para uma cidade tão ligada à pesca.
Ficou de fora deste itinerário, “apenas um dos vários percursos da “Rua do Azulejo”, como sublinham as duas guias, Jacinta Cunha e Tânia Guimarães, mas será o verdadeiro ex-líbris da azulejaria em Ovar, a Igreja de Válega, a pouco mais de seis quilómetros da cidade. Barroca de origem, o seu revestimento azulejar, interior e exterior, é da segunda metade do século XX: basta a fachada, com as suas pinturas intensamente coloridas, para deslumbrar — com o sol, refulge, ouro sobre arco-íris. São cerca de 800 as fachadas azulejadas identificadas em Ovar, 65% das quais no centro da cidade. É uma cidade-tapeçaria, uma espécie de cenário. O grupo da Universidade Sénior de Vila das Aves talvez volte para reclamar o seu quinhão: os azulejos pintados irão ao forno e ficarão à espera de ser levantados.