Pequena confissão autobiográfica

A poesia não tem de ser decifrável, nem imediatamente útil. Mas sem ela eu seria um cadáver a apodrecer no deserto

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uhleentothe/Flickr

A revisitação de paisagens, pessoas, fotografias, livros ou filmes pode parecer aos olhos dos cultores do presente e do efémero como um exercício narcísico, onanista ou tão-só inútil. Mas estou convencido de que esse regresso sempre singular ao passado é uma maneira de nos transformarmos, de o absorvermos diferenciadamente como numa viagem de cada vez única. Não constitui, por isso, uma vitória do imobilismo nem tampouco o reino do pó e da ruína. Mostra, apenas, que, na irrepetível experiência humana, passado, presente e futuro se confundem naquilo que é a biografia de alguém.

Noutro dia, ao rever (pela terceira, quarta vez?), com a minha mulher, o filme "Hannah e suas Irmãs", de Woody Allen, deparei-me com estes versos de e.e. cummings, num dos separadores que organizam a fita em momentos temáticos:

“Nobody, not even the rain, has such small hands” (“ninguém, nem mesmo a chuva, tem tão finas mãos”, na tradução de Jorge Fazenda Lourenço).

Tenho andado com este extraordinário verso na cabeça, como um enigma a pedir-me decifração. As mãos de uma rapariga no Inverno? Uma litania para a fragilidade humana? Uma pulsão sensual? Mas, para além da música que nele verte, como água, nada de substantivo me surge. É a forma que me domina como um subterfúgio de imagens, escravizando-me num vórtice de ideias desconexas.

A poesia não tem de ser decifrável, nem imediatamente útil. Mas sem ela eu seria um cadáver a apodrecer no deserto.

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