O conflito entre ciência e religião é confuso e parece não ter justificação a não ser o combate hermético e pseudo-intelectual entre ateus e crentes. Se Clausewitz fosse vivo, haveria de dizer que os debates deste género são a extensão da guerra: quem perde a batalha intelectual, está morto porque levou com um argumento fulminante no meio da testa e não pode ripostar porque perdeu credibilidade. A ciência parece ver na religião um empecilho para ser o único sistema de crenças em que o ser humano pode sustentar a sua opinião. A religião parece estar incomodada com a ciência, por haver cada vez mais “factos” que a destituem da credibilidade dos textos religiosos.
Sejamos claros: os escritos religiosos são etiologias. Isto é, com um ou outro dado carregado da sua factualidade histórica, as estórias que ali se contam não são mais que metáforas espirituais que os antigos encontraram para explicar a sua própria realidade. Não são para ser tomadas à letra. O espírito santo — seja lá o que isso for — não é uma pomba e deus não golpeou um tal de Adão numa costela para lhe arranjar uma garota com quem ir ao concerto dos Stones. E parem de defender que a Terra tem dez mil anos de idade, isso só vos fica mal.
A ciência, por sua vez, tem tido como mote principal, desde o seu "boom" após a Revolução Francesa e consequente secularização da sociedade, a melhoria da vida humana em todas as suas vertentes. Ainda assim, parece haver uma facção fundamentalista que lhe confere uma autoridade desproporcionada. Ou, como Ortega y Gasset lhe chamou, “o terrorismo dos laboratórios”, desprovido de éticas e morais. Os Richard Dawkins e Sam Harris desta vida são hoje extremistas prontos a fazer-se rebentar à porta de uma qualquer mesquita ou de um templo dedicado a Shiva.
A verdade é que a ciência acaba por ser um sistema de crenças com suficientes provas dadas. Mas não é por acaso que um dos métodos se chame de “tentativa e erro”. Também se erra muito, ao que parece. É dada aos fundamentos científicos uma reverência proveniente da esperança de salvação da espécie e, assim, é permitido praticamente tudo, quase sem debates éticos ou ideológicos. É mais ou menos como a Inquisição, com uma fogueira onde ardem ideias de sentido proibido.
Felizmente, não são poucos os cientistas que tiraram os olhos das placas de Petri para ver o panorama geral — podemos encontrar muitos deles nas compilações editadas por John Brockman, lançadas em português pela Tinta da China. Esses compreendem hoje que não há conflito entre ciência e religião e que a ciência está aí para dar liberdade e qualidade de vida ao ser humano, não para o castrar desta ou daquela ideologia. Ainda assim, ressalva-se o pensamento já popular: a minha liberdade termina sempre onde começa a do outro.
Se a ciência descobrir que deus existe, não há-de se estilhaçar por isso. Pelo contrário, terá mais gente a confiar nela. Se, por outro lado, houver prova científica de que deus não existe, também a religião não cairá — arranjará, de alguma forma, maneira de integrar a espiritualidade de cada um na mensagem das divindades às quais prestaram culto ao longo dos séculos. Senhoras e senhores: há lugares para todos. Sentem-se confortavelmente, apreciem a viagem e aproveitem para pôr a conversa em dia.