A Tartarugaspar enfiou uma última vez a cabeça na carapaça e saiu da Quinta. Desapareceu, deixando uma lembrança odiosa, tão grande que muitos animais ainda desperdiçavam saliva por sua causa, fosse em conversa ou nalguns comportamentos dignos de animais selvagens, desesperados enquanto se agarravam à magra vida que os sujeitava.
O Coelho logo arranjou uma substituta, escolha que desagradou ao Pato das Portas Travessas. Como ave rara que era imitou o Coelho e amuou. Deu às asas e voou com espalhafato. O Pato sabia que era superior ao Coelho, e que só não voava mais alto porque o comparsa não deixava. Farto do roedor, domesticado pela vida cómoda e longe do dia-a-dia dos restantes animais da quinta, disse a todos que ia voar de vez para longe da coelheira e voltar para junto dos outros animais. O Pato sempre gostara de andar misturado com a população animal, tocando penas com penas e pelos alheios, tentando ser o mais popular possível. Os mais avisados e experientes despediram-se dele com um “Até Já” e não com um “Adeus”. Pois, acontecesse o que acontece, aquele pato teimava em voltar: nadando, voando ou caminhando lentamente pata sobre pata.
O Coelho, de orelhas pelo chão e com o pelo num estado miserável, esqueceu os seus próprios amuos. Já não eram apenas os outros animais da Quinta que andavam desesperados, era a vez do líder das desgraças sentir as amarguras da vida. Ficou sozinho, mas nem ai compreendeu as dificuldades alheias. Arrojando as orelhas caídas, perdendo muito pelo e toda a dignidade, suplicou pelo regresso do Pato. Sujeitou-se e deixou que fosse ele a mandar na Coelheira daí em diante.
Com a rebaldaria na Coelheira o Cavaco Seco, do alto seu poleiro feito para os Galos orgulhosos do antigamente, teve de se mexer. Afinal nele ainda havia uma ou outra fibra verde de vida. Mesmo rachado, todos sabiam que a última palavra seria sempre dele, nem que fosse pela natureza do poleiro que ocupava e lhe permitia falar mais alto e sobre todos os outros. Sabiam que tinha esse poder e era seu dever usá-lo, mas quase sempre preferia ficar calado com medo de lhe saírem farpas incontroladas.
Com o Pato a voar já acima da Coelheira, quase ao nível do poleiro mais alto da Quinta, o Cavaco foi forçado a tomar uma posição vertical. Surpreendeu todos com um vigor que lhe era pouco próprio. Afinal, e apesar de tudo, continuava a ser ele quem mandava ali! Ordenou ao Pato que voasse baixinho. Pediu às roseiras, onde antigamente morava o governo da Quinta, para deixarem de lado os espinhos e se aproximarem da Coelheira. De surpreendidos passaram baralhados. Queria o Cavaco ajudar o Coelho que vira crescer à sombra da velha Laranjeira, limitar o voo do Pato e evitar que as roseiras crescessem livres como antigamente, ou estava simplesmente a tentar salvar a sua lenha cada vez mais apetecível para os fogos que grassavam pela Quinta?
Como se esperava, os Talhantes, que deixavam magras razões em troca de vítimas para o seu negócio, ameaçaram daí em diante nada mais trazer para alimentar os animais moribundos. Queriam garantias de que poderiam continuar com os abastecimentos de carne! Uns ficaram preocupados outros esperançados, pois viam aí a possibilidade de recuperar a independência e, mesmo em dificuldades, poder gerir novamente os meios de subsistência próprios da Quinta.
As roseiras não aceitaram mudar-se para junto da Coelheira, percebendo o perigo que isso acarretava. Mesmo evitando o desenraizamento que a mudança proposta pelo Cavaco obrigava, ficaram fracas depois de tudo aquilo. Murcharam, mirraram e perderam alguns espinhos. Talvez mais tarde pudessem de novo rebentar. O Cavaco Secou teve novamente de consolar o Coelho Preocupado enquanto via o Pato das Portas Travessas voar cada vez mais perto do seu poleiro.
Este texto é a continuação do conto “O Coelho Amuado e as contas da Tartarugaspar”.