Importa-se de repetir

"Sorrow" nunca mais será a mesma para os The National e para os fãs que os escutaram durante seis horas, e todos eles poderão entreolhar-se e pensar: "Nós estivemos lá"

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No passado dia 4 de Maio, a banda norte-americana The National deu um concerto de seis horas numa filial do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. O local e a duração do concerto, mais o prestígio da banda seriam suficiente para fazer do evento notícia, mas o que o distinguiu foi o facto de que nessas seis horas a banda tocou apenas a música "Sorrow", e nenhuma outra, repetidamente, durante as seis horas.

O projecto foi idealizado por um artista performativo islandês, Ragnar Kjartansson, a fim de explorar a experiência de partilhar uma música — sempre a mesma música — repetidamente, quase até ao infinito.

Talvez ache estranho quem nunca ouviu a mesma música duas, quatro, dez vezes, apenas porque essa canção parecia ideal para aquele momento ou para aquele estado emocional, ou porque transmitia um prazer que não se queria acabar, ou porque se descobria algo de novo de cada vez que se a ouvia. E quantos de vós, leitores, é que nunca o fizeram?

Em grande medida, a tecnologia evoluiu para tornar mais fácil a repetição: dos custosos vinis e cassetes passou-se para os CDs e os seus botões de "repeat", e depois para a música digital e os seus "loops" infinitos. A diferença do concerto dos The National foi a de que não era uma máquina que repetia, mas seres humanos. E isso importava, pois, apesar de tocarem sempre a mesma música, não era sempre a mesma música que tocavam, pois havia erros, mudanças, cansaço que se instalava. Relatos do evento mencionam que a certa altura o baterista da banda parou para comer e "Sorrow" foi tocada sem bateria, perdendo em ritmo o que ganhou num ambiente etéreo que ninguém antecipara.

É essa diferença — a de que o ser humano nunca repete da mesma maneira, quer esteja a ouvir quer esteja a tocar — que faz com que artistas como Kjartansson se interessem pela ideia de repetição. Pois o ser humano, apesar de ser uma máquina de repetir — repetir a respiração, o batimento cardíaco, a circulação sanguínea, os gestos, as palavras, e até a si próprio através da procriação — nunca se repete da mesma forma, o que leva alguns filósofos, como Gilles Deleuze, a acreditar que a repetição é apenas uma forma de conhecer de muitos ângulos e de muitos modos, com mais profundidade, de uma forma que ajuda a definir a nossa identidade, a forma como variamos em relação aos outros.

É por isso que a canção "Sorrow" nunca mais será a mesma para os The National e para os fãs que os escutaram durante seis horas, e todos eles — apenas eles — poderão de ora em diante entreolhar-se e pensar: "Nós estivemos lá".

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