“Peço a Palavra” (“Mr. Smith Goes to Washington”), de Frank Capra (1939)

Socorrendo-nos do título original, o Sr. Smith (o equivalente ao nosso Sr. Silva ou Sr. Santos) vai a Washington não para fazer turismo ou visitar a família, mas para ser político

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Com “Lincoln”, de Steven Spielberg, em exibição nos cinemas, que, além da revelação, aos mais distraídos, de Daniel Day Lewis como actor extraordinário, traz, aos menos informados, a de que já naquele tempo, em Washington, se compravam votos no Congresso dos EUA, vem a propósito voltar a esta capital para mais um filme clássico e para aproveitar, em tempos muito precisados disso, uma história de esperança. Neste caso, esperança na capacidade de o homem honesto comum mudar o mundo e vencer os poderosos no seu próprio terreno, apesar das suas bem oleadas máquinas de fazer política “de cima para baixo”, em que os de cima ficam cada vez mais em cima e os de baixo cada vez mais em baixo. Uma fantasia, já se vê. Mas uma fantasia muito bem feita, no tempo em que as sabiam fazer deste modo.

Socorrendo-nos, mais uma vez, do título original, o Sr. Smith (o equivalente ao nosso Sr. Silva ou Sr. Santos) vai a Washington não para fazer turismo ou visitar a família, mas para ser político durante um curto período de tempo, como se lhe tivesse saído um prémio num daqueles concursos telefónicos para sorteio de carros com que as estações de televisão se financiam ou no proverbial pacote de batatas fritas. Ora, sabendo-se que Portugal tem um Sr. Silva no poder, que o Brasil já teve um não há muito tempo e que Angola tem um Sr. Santos, será interessante reflectir sobre esta curiosidade e sobre o que fizeram e fazem em defesa dos seus homónimos cidadãos e como seria se um desses cidadãos comuns entrasse no Parlamento de cada um desses países armado apenas de convicções, ingenuidade e crença nas instituições democráticas. Teria certamente uma sorte bem diferente da do nosso Sr. Smith, que tinha a vantagem de actuar numa história e num tempo em que bastava denunciar publicamente esquemas de corrupção para que a força do escândalo e da vergonha, por um lado, e a acção da justiça, por outro, derrotassem os seus autores. A nossa realidade é outra.

Apesar de poder parecer uma outra versão de “O Feiticeiro de Oz” (afinal, poderia ser mais do que um sonho?), vale muito a pena ver “Peço a Palavra” e do que era capaz Frank Capra, dirigindo um elenco invejável e imenso, constituído por James Stewart (“A Mulher que Viveu Duas Vezes”) no papel principal, Jean Arthur (“Não o Levarás Contigo”) como a secretária do gabinete que lhe prestará um apoio fundamental, Claude Rains (“Casablanca”) como um senador da situação com vestígios de consciência, Edward Arnold (“O Homem que Vendeu a Alma”) como o corruptor-mor inclemente, Guy Kibbee (“Três Camaradas”) como governador do estado comprado, Thomas Mitchell (“Do Céu Caiu Uma Estrela”) como o repórter-beberrão simpático, Harry Carey como o colaborante presidente do Senado, Eugene Palette (“As Três Noites de Eva”) como pau para toda a obra do cacique político. Todos perfeitos nas respectivas caracterizações e nos contributos que deram – realcemos ainda o argumento e os diálogos de Sidney Buchman e Myles Connolly e a história de Lewis L. Foster (Óscar) – para a construção desta obra de arte.

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E a arte pode ser o que nos resta na resistência a uma era em que qualquer cão e gato com poder desafia a exposição pública da falta princípios dizendo que não se demite e que não lhe dói a consciência (seria preciso tê-la). Foi substituída pela avidez do lugar à mesa dos clubes exclusivos de distribuição de lugares e influências. Com vantagens para todos, excepto para a maioria. Onde está o “Governo do povo, pelo povo e para o povo”? Numa pedra em Washington e nos sonhos de muita gente ingénua que agora nem trabalho tem.

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