“Há muitas pessoas com doenças mentais que não se tratam porque têm vergonha”
Nos últimos anos, diminuiu muito o número de camas para pessoas com doenças mentais nos hospitais públicos, enquanto aumentou no sector social, sobretudo nas ordens religiosas, recorda o psiquiatra José Caldas de Almeida, que foi coordenador nacional da saúde mental e responsável por um plano de reformas que, diz, está "parado".
“A saúde mental tem sido maltratada” em Portugal e “uma das razões para isso é a ignorância”, afirma José Caldas de Almeida, que foi o responsável pelo Plano Nacional de Saúde Mental, entre 2008 e 2011. No ensaio A Saúde Mental dos Portugueses, lançado nesta quarta-feira pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o psiquiatra e professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa lembra que nos últimos anos se fecharam camas nos hospitais psiquiátricos sem se criarem alternativas. E lamenta que as discussões continuem a estar "mais centradas nos interesses corporativos de grupos profissionais do que na avaliação das necessidades das populações".
Portugal é, na União Europeia, um caso singular, tem uma elevadíssima prevalência de perturbações psiquiátricas (22,9% da população). Mais do que nós só a Irlanda do Norte, de acordo com um estudo de 2011. Como é que isto se explica?
Há várias possíveis explicações. Existem factores genéticos, culturais e sociais que, conjugadamente, contribuem para que haja uma prevalência mais alta de perturbações, nomeadamente de ansiedade, em Portugal. Temos vários factores desencadeantes ou perpetuantes dos problemas de saúde mental, porque haverá menos almofadas para os problemas que causam ansiedade. Agora, isto são possíveis explicações, ainda não sabemos.
Diz que a crise económica teve um impacto significativo nos problemas de saúde mental, que se agravaram nesse período.
Teve um impacto significativo, o que mostra que os problemas sócio-económicos têm a este nível um papel importante.
O nosso orçamento para saúde mental é de 5,2%, um pouco abaixo da média europeia. O problema é de financiamento?
Há vários problemas. Além de termos um financiamento baixo em termos absolutos, temos um financiamento baixo em relação à magnitude dos problemas de saúde mental e em relação à carga que representam. Enquanto temos uma carga superior a 20% [prevalência de perturbações na população], o orçamento é de cerca de 5%. E temos outro problema: o dinheiro disponível é muito mal utilizado ou é utilizado de forma pouco racional.
Defende que este é o maior desafio de saúde do século e que constitui mesmo uma ameaça para o futuro da economia. As doenças do cérebro, contabiliza, representam custos anuais da ordem dos 13 mil milhões de euros em Portugal.
Os custos económicos são enormes, porque as doenças mentais são as que têm maior responsabilidade no absentismo e na diminuição da produtividade de pessoas que estão a trabalhar (o presenteísmo). Por isso é que ter programas de prevenção é uma estratégia indispensável.
Já temos alguns programas desse tipo?
O plano de saúde mental iniciado em 2008 já inclui essas respostas, mas as reformas preconizadas foram suspensas. Extinguiu-se a coordenação nacional, que foi substituída pelo programa nacional de saúde mental — que não tem poderes para implementar o plano. No fundo, decapitou-se o plano de saúde mental.
Em Portugal, escreve, há uma vulnerabilidade do poder político às pressões dos sectores resistentes às mudanças. O que quer dizer com isto?
Em Portugal tem sido difícil haver uma discussão baseada em dados concretos e científicos para encontrar um consenso. As discussões são à volta do sexo dos anjos. Muitas são mais centradas nos interesses corporativos de grupos profissionais do que na avaliação das necessidades das populações.
E quais são as principais necessidades da população a este nível?
Para algumas doenças mentais, como para muitas doenças não mentais, não há cura. Agora, hoje temos disponíveis intervenções terapêuticas altamente eficazes. Mesmo na esquizofrenia e na doença bipolar, se tivermos programas de tratamento que envolvam aquilo que a ciência hoje nos põe à disposição, podemos oferecer melhorias muito significativas. Quando comparo o que se faz hoje com o que se fazia há 20 anos a diferença é enorme. Mas há muitas coisas que poderiam melhorar imenso a vida das pessoas com doenças graves que os nossos serviços não conseguem oferecer.
Diz também que em Portugal ainda persistem o estigma e os preconceitos associados às doenças mentais.
Sim. A maior parte das pessoas ainda estão convencidas de que nas doenças mentais não há nada a fazer. Se falar até com pessoas em altas posições no Ministério da Saúde [e outros organismos] encontra muitas que estão convencidas de que não há muito a fazer. E, se tiverem alguém na família [com doença mental], têm vergonha em falar disso. Entre os profissionais de saúde mental o estigma é muito grande também. Até entre os doentes… Há muitas pessoas que têm doenças mentais que não vão tratar-se porque têm vergonha.
Os hospitais psiquiátricos ainda têm razão de ser?
Já podemos viver sem os hospitais psiquiátricos, desde que se criem outro tipo de serviços, mas, enquanto isso não acontecer, não os podemos fechar. Agora, cerca de 70% da população em Portugal já não depende de hospitais psiquiátricos, depende de serviços que estão nos hospitais gerais da sua área. Costumo dar o exemplo do Hospital Miguel Bombarda, que era responsável por metade de Lisboa e a parte Sul do país. Hoje, a resposta a estas pessoas é garantida pelos hospitais da Amadora, Cascais, Almada, Barreiro, Setúbal, Beja, Évora, Faro. Conseguimos fechar um hospital psiquiátrico e transferir essa responsabilidade para uma série de serviços modernos em hospitais gerais. O problema é que esses hospitais deviam ter não só camas para internar mas também equipas na comunidade e centros de saúde mental, e a maior parte não tem.
Ainda há muito a fazer em Portugal, portanto?
A saúde mental tem sido maltratada e uma das razões para isso é a ignorância. Apesar de todos os progressos, temos uma dificuldade muito grande em consciencializar a opinião pública e os políticos da necessidade de ter políticas e planos sustentados.
No ensaio critica a chamada transinstitucionalização, a transferência de alguns doentes que viviam em hospitais psiquiátricos para ordens religiosas. Como é que isto aconteceu?
A interrupção da implementação do Plano Nacional de Saúde Mental, em 2011, teve um efeito terrível, porque estávamos a fazer grandes progressos. Interrompeu-se um dos componentes principais da reforma – a criação de cuidados continuados de saúde mental –, suspendendo todo o trabalho que estava a ser feito de desinstitucionalização e de criação de alternativas aos hospitais psiquiátricos. E continuou-se a fechar camas nos hospitais psiquiátricos sem se criarem alternativas cá fora.
O que é que sucedeu a esses doentes?
Alguns começaram a ser transferidos sobretudo para camas do sector social [basicamente ordens religiosas]. Por isso houve uma diminuição significativa de camas nos hospitais públicos e um aumento de camas no sector social. O que aconteceu foi uma transinstitucionalização – as pessoas foram para outras instituições, o que não é bom. Vários responsáveis políticos disseram na altura que esta [nova institucionalização] era necessária, o que eu acho um disparate completo.
Há quem diga que muitas destas pessoas estão a viver na rua. É verdade?
Não creio que em Portugal isso tenha acontecido, foram para outras instituições. Um dos objectivos principais do plano é criar serviços a trabalhar na comunidade em ligação com cuidados de saúde primários. Essa parte está completamente parada. Ainda fizemos muitas coisas boas, como transferir doentes agudos para hospitais gerais, agora na outra componente (as equipas na comunidade) são muito poucos os serviços que as têm e a funcionar em pleno.
A reforma está parada desde essa altura?
A reforma prevista no plano iniciado em 2008 implicava o desenvolvimento de serviços de saúde mental na comunidade. Isso inclui residências na comunidade, fóruns ou centros de dia com programas de reabilitação, programas de reabilitação profissional com emprego apoiado e apoio a empresas sociais. Ficou combinado que haveria uma rede de cuidados continuados que incluiria todas essas estruturas. [Entretanto], foi feito um trabalho enorme. Teve que se fazer legislação nova, criar acordos entre a Saúde, Segurança Social e o Emprego. Em 2010 estava tudo pronto, mas, por azar, isto coincidiu com a mudança de Governo e com a crise económica e foi tudo suspenso. No final do Governo anterior, depois de adiamentos sucessivos, ainda foi anunciado que iam ser lançados alguns serviços, o que acabou por não se concretizar porque eram serviços que não tinham sentido nenhum.
A situação não terá melhorado muito entretanto, afirma. Passados dois anos da tomada de posse deste Governo, ainda não há alterações significativas?
Depois deste Governo tomar posse, houve sinais positivos. O novo Governo anunciou que ia avançar com alguns desses novos serviços. E alguns foram, um pequeno número. Infelizmente as coisas não avançaram com a rapidez esperada. Ultimamente houve sinais de que haveria uma intenção do Ministério da Saúde iniciar uma nova fase na implementação do plano. Estamos na expectativa. Seria muito bom, já perdemos muito tempo.