Liberdade: é a palavra-chave para compreender o que une os filmes do ano que a revista francesa Cahiers du Cinéma escolhe na sua última edição. Entre eles, Tabu, de Miguel Gomes, porque “liberdade é aquilo que tem faltado ao cinema contemporâneo”.
Na análise que, a pedido do PÚBLICO, Jean-Philippe Tessé fez sobre essa lista, o director-adjunto diz que este exercício de selecção, que não é feito sem a devida “negociação, puxar de cabelos e discussão”, é um “jogo cinéfilo com longa tradição”. E, sem deixar de ser “lúdico”, pode dar conta de uma “evolução” do modo como o cinema responderá ao mundo contemporâneo.
Na lista, encabeçada por Holy Motors, do francês Leos Carax (estreia em Dezembro em Portugal depois da antestreia no Lisbon & Estoril Film Festival) – e a única presença francesa na lista – estão filmes assinados por nomes que têm procurado sair das teias dos estúdios “e reinventar o seu próprio cinema”. São os casos de Cosmopolis, de David Cronenberg, e Twitxt, de Francis Coppola, os 2º e 3º lugares.
“Estes são realizadores com uma longa carreira que têm querido viver fora do sistema”, disse Tessé, para quem Coppola “se tornou completamente imprevisível”. Um dos movie brats que, nas décadas de 1960 e 1970, foi um dos cultores de um “novo cinema norte-americano feito nos estúdios” – Apocalypse Now ou a trilogia O Padrinho –, “rompeu com os estúdios e auto-financia-se. Afastou-se de tudo. Não podemos adivinhar o que serão os seus filmes”, diz o director-adjunto e também crítico.
Algumas surpresas
O mesmo é válido para Cronenberg: destaca-se “a espantosa liberdade” com que tem trabalhado e de que Cosmopolis, produzido por Paulo Branco a partir de um romance de Don DeLillo, será exemplo. O que estes realizadores propõem é uma revisão da própria ideia de autor e da sua iconoclastia, afastando-se da “consagração consensual sugerida pelos festivais”.
A surpresa da lista é, precisamente, a ausência de nomes como Michael Haneke, Palma de Ouro em Cannes com Amour (estreia em Dezembro), e dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, Urso de Ouro em Berlim com César deve morrer (ainda em exibição nas salas portuguesas). “Não são filmes generosos”, começa por dizer Tessé, que não hesita em classificá-los como projectos “pensados para fins mediáticos”, e presos a um “academismo artístico autoritário”.
Fala de exemplos de “um cinema formatado pelo academismo”, onde imperará o desejo de “esmagamento do espectador através da imposição de uma moral”. E contrapõe a estes filmes aqueles que foram os que mais eco fizeram em Cannes e Berlim, mas que tiveram apenas distinções especiais ou marginais nesses festivais: Holy Motors recebeu o paralelo Prémio da Juventude em Cannes, e Tabu, 8º lugar na lista, foi distinguido em Berlim com o Prémio Alfred Bauer para a inovação artística. “São exemplos de uma radicalidade que não se assemelha a nada”. E foi isso que interessou: um cinema “impressivo, lírico e livre”, onde Tabu pode surgir ao lado de duas obras de Abel Ferrara, 4:44 Last Days on Earth (4º lugar) e Go go Tales (7º). As únicas fronteiras que importam a este cinema “tão diverso”, “são aquelas que lhes interessa perturbar”.
Filmes que não procuram consensos
Perturbar será outra palavra-chave e ajudará a compreender porque é que na mesma lista surgem Procurem Abrigo, de Jeff Nichols, ex-aequo em 4º lugar com Ferrara, e a fechar Keep the lights on, de Ira Sachs (Melhor Filme do Queerlisboa 2012). São filmes que ensaiam uma resistência da narrativa clássica, “aparentemente sem nada de extraordinário” mas revelando uma cinefilia expressa em “ideias de realização, soluções de interpretação, luz, diálogos e som” que os elevam acima do patamar do cinema independente. “São filmes inteligentes, que recusam a manipulação das emoções dos espectadores”, porque “não buscam consensos”. Afinal, linhas de força da revista que começou nos anos 1950 como apaixonada carta dos cineastas franceses ao cinema americano que, já então, queria escapar ao formalismo dos estúdios.
A procura de consenso tem sido fatal para o cinema, diz, aliás, Tessé. Isso pode explicar porque é que a lista, sendo encabeçada por um filme francês, gere depois um ensurdedor silêncio quanto ao resto de uma cinematografia. Jean-Philippe justifica: o cinema francês acusou “um sufoco” provocado por “uma academia insuflada”. Aponta o dedo a Michael Haneke, autor que antes os Cahiers du Cinéma louvaram, em filmes como A Pianista (Palma de Ouro em Cannes em 2004), ou a Jacques Audiard, que estreou De rouille et d’os, um sucesso de público que é sinónimo de um entusiasmo que terá pouco que ver com um cinema “que se interroga”.
A lista é, por isso, e também, uma reflexão sobre um modo de olhar para a condição de autor. As escolhas revelarão um cinema que, podendo ser visto como um espelho da realidade, insiste na procura de “uma outra margem de negociação”. E, por isso, ao escolher estes filmes – ainda: In Another Country, do sul-coreano Hong Sang-Soo (ex-aequo, em 4º lugar), e Faust, variação do russo Alexandr Sokurov do mito escrito por Goethe (9º) – o caminho para o qual apontam é “múltiplo”, conduzido pela “curiosidade marginal dos realizadores” que, através de olhares inventivos, são “generosos na partilha de uma liberdade emocionada”.
Desde 1981 que o cinema português está presente nas listas da revista. Nesse ano Francisca, de Manoel de Oliveira, ficou em 1º lugar. O realizador é, aliás, a figura mais presente, com vários dos seus filmes distinguidos: 1989 (Os Canibais, 5º), 1990 (Non ou a Vã Glória de Mandar, 5º), 1993 (Vale Abraão, 2º), 1998 (Inquietude, 5º), 1999 (A Carta, 7º), 2001 (Vou para Casa, 5º), 2002 (O Princípio da Incerteza, 5º), 2009 (Singularidades de uma Rapariga Loura, 5º) e 2011 (O Estranho Caso de Angélica, 2º). Segue-se Pedro Costa com duas entradas: Ossos (1998, 10º) e Juventude em Marcha (2008, 2º). Outros realizadores portugueses presentes: João Botelho com Um Adeus Português (1987, 10º), João César Monteiro com A Comédia de Deus, 1996, 5º) e João Pedro Rodrigues com Morrer Como um Homem (2010, 7º)