Há filmes e há filmes, este é um daqueles que nos entra pelo corpo e nos deixa em modo bioluminescente dentro da sala escura. Sem muito tempo para apresentações, entramos pela vida de Armando e de Maria Fernanda adentro, marido e mulher, avós do realizador. Um gesto de Armando pontuado por um poema de sua autoria, seguido do imenso exterior: o céu limpo, o nevoeiro portuense, o rio ao fundo, as pessoas da rua avistadas daquele oitavo andar; e de volta ao interior: o quarto, a sala, a cozinha, os jornais, as conversas, a voz televisiva, as refeições, a ginástica, o discurso político, o movimento de limpar a casa, arranjar as coisas, cuidar das coisas, as tarefas diárias vigiadas pelo passar do tempo.
“Todos os dias fazer a mesma coisa, tomar o pequeno-almoço, ir ao supermercado, buscar o jornal, tem que ser.” (Maria Fernanda). Penso também no recurso aos planos das janelas, onde o vidro é uma espécie de folha que se dobra em dois, de um lado, vida de casa, do outro, a vida lá fora. Mas o filme não se desdobra apenas entre o olhar paisagístico exterior e o olhar de dentro para fora, sugere também um olhar simultâneo de duas pessoas sobre o mundo, que na maior parte das vezes, se sobrepõe num diálogo surdo e enternecedor.
Sem querer subtrair expectativas ao espectador, um dos momentos de que mais me apetece falar acontece quando Armando encosta o pé nas costas de Maria Fernanda enquanto vêm juntos os Jogos Olímpicos na pequena televisão. Ele deitado na cama, ela um pouco mais à frente, sentada. Armando começa cuidadosamente a fazer-lhe festas com o pé, ela reage, ele continua até ao cabelo. No ecrã, o atleta chinês que pinta literalmente o palco com os pés. Os pés de Armando insistem no desenho nas costas da mulher, terminando o seu percurso num abrupto “Tá quieto!”. A resposta prática ao afago dele.
Não há nada de extraordinário na forma de vida deles, o que a faz extraordinária é o ‘deixarem-se ser’, consentindo a nossa entrada. Esta aproximação cinematográfica através de uma câmara hábil mas pouco ruidosa, é uma proeza rara.
"A Nossa Forma de Vida" obteve o prémio do DocLisboa para melhor primeira obra, na competição nacional e uma menção especial do júri no festival Cinèma du Réel, e estreia, esta quarta-feira, no Cinema Passos Manuel, no Porto, com a presença do realizador.