Deitado numa cama, no 1º andar de um Hotel na Rua Paissandu, bairro do Flamengo, Rio de Janeiro, tento fazer como Borges e sonhar o outro que me sonha. Mas não consigo… Distrai-me a sensualidade difusa de um dissonante coro de vozes sobrepostas, coalhadas pela luz tardia; uma algaraviada de brados vindos de baixo, dos empregados e empregadas que, no piso térreo, se entregam com estranha alegria às suas tarefas de todos os dias.
Risos sobem e descem. Enrolam-se em espirais de cornucópia, chegando-me frescos, como água limpa no rosto. Adivinho mãos fatigadas e envelhecidas, mas as vozes são juvenis e aéreas, como vogais abertas numa canção antiga. Não entendo muitas das palavras, há uma mistura de vento, sabão e sol, algo que apela mais ao sentir do que ao pensar, ou ao pensar sentindo.
Um dia todos os rostos perdem os seus contornos e desaparecem na noite de nunca mais. Como lidamos com eles todos os dias, não nos apercebemos desse lento esbatimento, mas se comparássemos fotografias com dez anos de distância, perceberíamos como a morte se mistura com a vida.
Uma das maneiras de enganar a morte é cantar. A outra é dançar. Os brasileiros melhor do que ninguém entenderam isso e praticam a morte da morte. Nas ruas, nos bares, no trabalho.
Se o Rio de Janeiro fosse música, seria a dessas vozes dissonantes, difusas e leves, que não me deixam dormir nem sonhar o outro que me sonha (o que, diga-se, bem pode esperar!).