Contratar médicos como quem compra soro fisiológico

Concurso lançado pelo Governo para contratar médicos a baixo preço significa precariedade para os médicos e piores serviços de saúde para toda a população. Está em causa o Serviço Nacional de Saúde, diz o representante dos médicos internos, Roberto Pinto

Representante dos internos diz que o acesso das pessoas à saúde tem piorado significativamenteNelson Garrido
Fotogaleria
Representante dos internos diz que o acesso das pessoas à saúde tem piorado significativamenteNelson Garrido
Roberto Pinto é coordenador do Conselho Nacional do Médico Interno Fernando Veludo/nFactos
Fotogaleria
Roberto Pinto é coordenador do Conselho Nacional do Médico Interno Fernando Veludo/nFactos

Contratar médicos à hora pelo mais baixo preço possível. Depois de enfrentarem um período de cerca de um ano e meio sem concursos para admissões no Serviço Nacional de Saúde - entretanto anunciado, na passada quarta-feira, dia 20 - os médicos têm mais uma luta entre mãos. O coordenador do Conselho Nacional do Médico Interno, Roberto Pinto, garante que, com a aberura deste concurso "low cost", o que está em causa é toda a população, que terá acesso a uma qualidade cada vez mais duvidosa. Em entrevista ao P3, fala de aumento da precariedade entre médicos - alguns já a pensarem em emigrar - e de uma formação com cada vez menos qualidade para os internos. Nos dias 11 e 12 de Julho os médicos vão fazer greve.

O Governo lançou recentemente um concurso para contratação de serviços médicos a baixo custo. Como analisa esta medida?

O facto do adiamento dos concursos ser sucessivo, já dava a entender que o Governo não tinha interesse em definir as regras de contratação colectiva e estabelecer as carreiras médicas. Mas não estávamos à espera que a forma de contratar os médicos fosse exactamente igual à forma de comprar compressas ou soro fisiológico: um aviso de abertura numa central de compras, onde nem se tentam contratar médicos mas sim horas de serviço, sendo o único critério de adjudicação o mais baixo preço. Para além da questão da precariedade laboral – porque o contrato deixa de ser com o hospital, passamos a trabalhar para empresas em regime de recibo verde - isto vai levar à degradação dos serviços prestados à população e à degradação da formação.

Passam a trabalhar à hora...

As empresas candidatam-se a essa "pool" de horas e a vencedora é a que tiver o menor custo. Não há limites. O que é evidente é que vamos assistir a uma baixa continua dos preços até ao momento em que exista alguém que aceite o mais barato, sendo que este implica que quem fizer mais consultas durante uma hora também apresenta um mais baixo custo por serviço.

O número de médicos a pedir a reforma antecipada cresceu e o bastonário da Ordem dos Médicos defende que isso afecta a formação dos internos. Já se sente nos hospitais este efeito?

Já se sente em alguns serviços. O que temos visto nos últimos anos é que com a abertura de hospitais privados e a pioria das condições de trabalho nos hospitais [público], muitos colegas, sobretudo os mais velhos, deixam de trabalhar no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e vão trabalhar para os hospitais privados. Se essas pessoas eram as mais graduadas e com mais experiência, de certeza que eram as mais capazes de ensinar os jovens médicos.

Esta nova forma de contratação, através de empresas externas, também afecta a formação dos internos?

Claro. Nada [do que se passa] se compara a esta medida de contratação, que impõe que os especialistas nos hospitais vão estar lá por períodos muito curtos. As empresas de contratação podem mudar os médicos de 30 em 30 dias, Ou seja, os serviços podem ver o seu corpo mudado de 30 em 30 dias. Não há qualquer estabilidade. O interno tem um orientador e com este novo sistema vai ser impossível continuar a existir essa figura. Como é que esses médicos podem ser formadores se vão estar sempre a mudar de hospital? Vai acontecer uma degradação a médio prazo.

Portugal tem demasiados cursos de Medicina?

Há estudos internacionais que dizem que deve haver uma faculdade de Medicina por cada dois milhões de habitantes. No nosso país, das dez universidades públicas que existem, só uma não tem o curso de medicina, a de Trás os Montes e Alto Douro. Qualquer instituição que queira ter qualidade tem de ter massa crítica e a pulverização das instituição não ajuda muito a isso. Para além do número [de cursos], é evidente que existem “numeros clausus” excessivos em relação ao que são as capacidades formativas do SNS. Estamos a chegar a um limite em relação ao número de estudantes porque os hospitais não são capazes de os receber depois para o internato.

De que forma tudo isto afecta o serviço prestado nos hospitais?

O acesso das pessoas à saúde tem piorado significativamente. O que mais nos toca é a forma como as reformas afectam o serviço prestado. Há, neste momento, um racionamento implícito, como disse o bastonário. No dia-a-dia não somos muito confrontados com situações dessas, mas sabemos, por exemplo, que muitas vezes o doente não tem dinheiro para comprar os medicamentos que receitamos. As taxas moderadoras fizeram com que a afluência às urgências tivesse diminuído imenso e as pessoas não estão menos doentes. As taxas moderadoras não são taxas moderadoras, são um co-pagamento. E há outros factores, como os transportes, que são muito importantes. As pessoas não têm muitas vezes dinheiro para se deslocarem aos hospitais.

Sugerir correcção
Comentar